sábado, 20 de outubro de 2007

O meu Liceu

Ensaio publicado no livro O Liceu do Meu tempo - Vol. 2, organizado pelo professor Auriberto Vidal Cavalcante.


O Liceu não foi para mim a escola risonha e franca do poeta. Foi sim a oportunidade para conhecer de perto as assimetrias econômicas e culturais da nossa sociedade. Saído de um colégio pequeno, particular, o “Ginásio Farias Brito”, dirigido por amigos de família, os professores Ari de Sá Cavalcante e João César, estava protegido dos impactos que só o convívio com pessoas de diferentes camadas sociais revela. Decidido que iria cursar o científico lá – como se chamava o ciclo de três anos que encerrava o secundário – tive que me submeter à um exame de seleção para disputar uma das vagas remanescentes oferecidas à estudantes oriundos de outros estabelecimentos de ensino. Lembro com que apreensão galguei as escadarias da porta principal, defronte à Praça Fernandes Vieira, primeiro para me submeter às provas, e depois, aprovado, matricular-me e iniciar as aulas. Tudo era novo e diferente. Colegas, professores, disciplina, relacionamento com funcionários. Sentia-me desprotegido e com a sensação de que a partir daí tudo iria depender de mim, do meu esforço e desempenho. A segurança dos pais e a atmosfera familiar do antigo colégio, ficara para trás. O espaço público onde acabara de ingressar a todos nivelava, e foi essa constatação que inicialmente me assustou. Começava ali minha descoberta do mundo. Iniciava o aprendizado de suas belezas e misérias.

Indicaram-me o alfaiate especialista na confecção da farda de cáqui, túnica com botões negros com a efígie do colégio, calça, e uma boina azul. Nunca esqueci seu nome, Miririco, baixinho e hábil no mister de coser uniformes. Com ela frequentei os dois anos do turno da manhã, suando em bica no percurso feito a pé, do colégio até minha casa, sita à Avenida Bezerra de Menezes, vizinho ao quartel do CPOR, na companhia alegre de colegas, entre os quais ressalto a figura bondosa do José Tarcísio Sindeaux Gurgel, amizade querida, conservada até sua morte.

Na sala de aula éramos alunos de várias procedências. Muitos, vindos do interior, hospedados em casas de parentes, na Casa do Estudante, ou em pensões precárias, enfrentando enormes dificuldades. Alguns, de Fortaleza, filhos de famílias modestas. Uns poucos, como eu, membros da classe média que buscavam o Liceu pela qualidade do ensino. A primeira dificuldade a superar era a da integração com os colegas, sem deixar-me isolar, por preconceito ou desconfiança. Nisso fui bem sucedido. Gozei da estima de todos e fiz ali amizades que ainda hoje perduram. Essa primeira lição aprendida me acompanhou pelo resto da vida, e foi a meu juízo fator decisivo para o êxito profissional e político que alcançaria mais tarde. E isso foi o mais importante. Não sei bem o que aprendi, mas lembro com quem aprendi. Em primeiro lugar com os outros alunos, com seu testemunho de vida, particularmente os colegas do turno da noite, para o qual me transferi no terceiro ano científico afim de ter mais tempo de me preparar para o vestibular de medicina. Estudante profissional, assim chamados os que como eu não precisavam trabalhar para manterem-se, convivia com muitos, que bêbados de sono assistiam as aulas, vindos diretamente de quartéis, escritórios, estabelecimento comerciais, e repartições públicas.

Comovia-me o esforço deles, levando-me a refletir sobre a desigualdade de nossas condições materiais. Essa, a segunda lição que estava aprendendo sutilmente, sem precisar dos compêndios sobre as teorias sociais e a divisão de classes. As conversas animadas no intervalo das aulas, as discussões sobre os fatos do momento, e até altercações rápidas atiçadas pela política partidária, enchiam nossas horas livres. Não raro, a algazarra se estendia até a praça, terminando na leiteria situada na esquina da Rua Guilherme Rocha, onde nos servíamos de uma coalhada de cujo sabor até hoje me recordo.

Dos professores guardo imagens inesquecíveis bem como dos ensinamentos que armazenei, desafiado pela necessidade de superar deficiências pessoais e aprender que sem estudo não havia como vencer os obstáculos que teria pela frente. Quanto de português aprendi nas aulas caóticas, pela galhofa dos jovens, mas cheias de conteúdo, do professor Boanerges Luz? Ou nas lições do mestre Martins de Aguiar, às vésperas da aposentadoria, envergando terno branco com uma imagem de Nossa Senhora na lapela? Linguagem desabrida e disciplinadora, impunha respeito e metia medo à turma. O que ficou da língua francesa ensinada pelo professor Tupá com base no “Manuel de Français” de Henri de Lanteuil, e que se apresentou no primeiro dia de aula explicando a origem do seu nome? Não esqueço a fisionomia bondosa de Waldemar Barros, com óculos enormes, esforçando-se para nos ensinar o inglês, e que a irreverência dos alunos apelidava às escondidas de “how many”. Quanta eficiência e disciplina imprimiu ao seu magistério Rebouças Macambira, ao ponto de dar-me em um único ano, com base no “Manual de Espanhol”, de Idel Becker, o preparo para no futuro ler e entender a língua de Cervantes. Ou de como me ajudaram a vencer dificuldades com a matemática o método rigoroso e exigente do Professor Jaborandi e a figura amena do Manuel Cavalcante. Tudo a partir de um livro sisudo, de lombada roxa, conhecido como “Os Quatro Autores”. Tenho vivo na memória as figuras de Praciano e Sobreira a ensinarem desenho, carregando réguas, esquadros, e compassos enormes, que quase requeriam um auxiliar para transportá-los. E as lições de história de Fernando Maia, que ficaram na lembraça pelo vigor cênico com que narrava as batalhas da segunda guerra mundial. As fórmulas químicas do Rouquayrol, ensinadas com rigor e austeridade, eram uma espécie de transição entre antigos e novos modos docentes. Não há como deixar de falar em Ademar Batista, que parecia carregar o Liceu no peito tal seu amor pelo colégio. Bem assim, de Boanerges Sabóia, figura indissociável da escola que dirigiu por muitos anos. Não dá, no reduzido espaço de que disponho, para falar de todos. Mas de cada um guardo uma recordação feliz, e a gratidão por terem me ensinado à sua maneira a descobrir os caminhos do mundo.

Ainda é preciso lembrar duas figuras que marcaram o Liceu do meu tempo, – o “seu Néon”, o bedel que zelava pela disciplina, cujo filho era nosso colega, e a Dona Maria, esposa do Pierre Lima, que ensinava Ciências e depois foi vereador em Fortaleza. Na secretaria do colégio ela nos atendia paciente, informando a todos as notas dos exames com uma atenção a ser imitada por todo servidor público.

Bons tempos aqueles em que ser aluno ou professor no Liceu, era motivo de destaque e orgulho, e dirigi-lo posto muito disputado. O ensino tinha bom nível, mas as vagas disponíveis eram muito limitadas e o acesso restrito. A escola pública expandiu-se e ficou mais democrática, mas o ensino deteriorou-se. A lição do Liceu que frequentei não é a do saudosismo imobilizador, mas a da alta valia da educação pública para os jovens e o País.

O possessivo do título se explica por ter sido esse o Liceu que vi, no meu tempo e nas minhas circunstancias, como cada um tê-lo-á vivido ao seu modo. Daí poder dizer-se, a partir de tantos pontos de vista distintos, Liceu, Liceus. Adoráveis recordações da juventude que passou, sem passar.

Um comentário:

Anônimo disse...

Meu Liceu

Seu Liceu é o meu Liceu. Defrontei-me com meu tempo de estudante, percorri opensamento nos corredores, nas salas de aula, nos desfiles de 7 de Setembro, eu porta-bandeira, orgulhosa com aquele uniforme do Liceu do Ceará.
Quase não acreditei quando li meu nome na lista das aprovadas. Eu queria fazer o curso científico, pois para entrar numa faculdade, não servia o chamado curso normal. Muitos professores foram importantes para minha formação estudantil e profissional. Cultivei a amizade com muitos deles.
Eu eraq a oradora oficial. Em todos os eventos, festas oficiais eu era a oradora.
Ainda hoje guardo um retrato do Paulo Sarasate me cumprimentando. Aliás fiquei muito triste por não poder ir ver a exposição dos cartazes políticos no Ceará. Adoraria! mas com esse oxigênio no nariz não é fácil.
Com grande júbilo comemorei a vitória de Barack Obama. Lí no jornal O Povo as similaridades temáticaas dos discrusos dele e de Chaplim. Cá entre nós: temo pela vida dele...Não confio nos poderosos dos EUA.
Você é o Obama do Ceará! Tem um George Bush aqui que lhe persegue. Vamos esperar os próximos mandatos.
Deus está com você.
Saúde, Paz, Amor!
Mirza