quarta-feira, 20 de abril de 2016

COMO MORREM AS INSTITUIÇÕES
(BOLÍVAR LAMOUNIER)


Instituições não morrem de morte morrida, morrem de morte matada – e raramente de forma abrupta. Fenecem (ou se atrofiam) gradativamente, ao longo de um processo pontilhado pelo desprezo de alguns e pela prepotência de outros. E, sobretudo, por agressões e traições ao seu espírito. Por ações e omissões da parte dos dirigentes e representantes aos quais incumbe zelar pelos papéis que as distinguem, mas que em vez disso acabam contribuindo para a descaracterização deles. 
Para bem fixar o sentido da afirmação acima peço licença para fazer dois esclarecimentos preliminares. O primeiro é que esta reflexão carece de sentido para extremistas de direita ou de esquerda. Para os adeptos do fascismo (e do populismo, seu primo pobre latino-americano), o que importa é a vontade do líder, do Führer, nunca os “formalismos vazios” que os liberais chamam de “instituições”. Numa linha muito própria, o conceito de política empregado pelos comunistas e seus companheiros de viagem tem pouco ou nada que ver com instituições; mal se distingue da tática, domínio regido muito mais pela malícia do que por valores. Os leitores a que me dirijo são, portanto, preferencialmente, os que prezam o liberalismo político e a democracia. 
Em segundo lugar, há uma interrogação prévia a ser respondida. O que distingue uma instituição de uma organização qualquer? Minha resposta, já em parte indicada, é que uma instituição só existe em função do fiel cumprimento, por seus dirigentes e representantes, dos papéis que conferem sentido prático aos valores que ela professa. Uma igreja cujos dirigentes não se comportam como religiosos pode ser qualquer coisa, mas igreja certamente não é. O comandante militar que propende a agir como braço armado de um líder ou de uma facção política pode ser um caudilho, mas não a autoridade que jurou defender a sociedade e a Constituição. A distinção que estou tentando delinear vale em todos os níveis e âmbitos da sociedade. Por ação ou omissão, o professor que não vê diferença entre ensino e proselitismo e a maioria estudantil que se acomoda ou se deixa intimidar pelos profissionais do grevismo também contribuem para a descaracterização da instituição universitária. 
Infelizmente, a crise política e econômica em que o Brasil se encontra é propícia à multiplicação de comportamentos anti-­institucionais. Três casos recentes parecem-­me requerer um comentário crítico.
Primeiro, o posicionamento assaz polêmico de dois ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Luís Roberto Barroso e Marco Aurélio Mello. 
Barroso, antecipando o possível afastamento de Dilma Rousseff e a consequente ascensão de Michel Temer, exclamou diante de uma plateia algo como “um governo do PMDB? Meu Deus, é isso o que temos?” – enunciando uma posição manifestamente facciosa. Não menos chocante, Marco Aurélio Mello, dono de uma formidável bagagem de conhecimentos jurídicos e de uma não menos formidável experiência judicante, assumiu uma posição frontalmente contrária ao impeachment, chegando mesmo a vaticinar dias sombrios para o País no caso de a proposição a ser brevemente votada na Câmara dos Deputados sair vitoriosa. Um juízo de valor, sem nenhuma dúvida, com a agravante de haver sido formulado como uma previsão ou antecipação hipotética de um estado de coisas futuro.
Proposições desse tipo são adequadas quando enunciadas pelos profissionais da futurologia – a chamada “construção de cenários” –, mas descabem por completo na boca de um magistrado. 
O segundo caso, que comento por dever de oficio, é a compra de votos para tentar deter o impeachment que Lula organizou nas dependências do hotel Golden Tulip, em Brasília. Há coisa de 20 anos, e com objetivo patentemente eleitoral, Lula ofereceu aos brasileiros uma avant-­première do gênero populista pelo qual haveria de se nortear, afirmando que mais de metade da Câmara dos Deputados era integrada por “picaretas”. Em outros tempos – lembro-­me dos anos 50 –, teria recebido uma resposta à altura. Se se atreveu a fazer tal afirmação, foi certamente por perceber a vertiginosa perda de altitude do Poder Legislativo no período pós-­transição e pós-­Constituinte. Mas, ainda assim, quem ali vemos, no Golden Tulip, dando expediente ful-l­time, é um ex-­presidente da República. Um ex­-presidente investigado pela Justiça, isso é certo, mas que ao menos por três razões deveria dar­-se ao respeito: o cargo que ocupou durante oito anos, a estima que parcela expressiva da sociedade ainda lhe devota e um elementar respeito às instituições democráticas. 
Por último, devo também me referir a certo tipo de parlamentar, aquele ao qual Lula parece estar se dedicando com maior afinco. Falo dos “picaretas”, do “baixo clero”, dos que devem seus mandatos aos “grotões” – ou seja, daqueles que jamais ergueram a voz para contestar esses termos pejorativos, como também não contestaram o insulto que Lula lhes fez em 1993. 
Quer nas referências verbais que fazia em relação a eles, quer nas atividades “práticas” mediante as quais procura aliciá-­los, Lula sempre os aviltou na física e na jurídica – ou seja, como indivíduos e como integrantes da instituição legislativa. Se esse é um retrato fiel dos “picaretas”, se eles de fato carecem, como Lula insinuou, da altivez e da independência que o exercício de um mandato eletivo pressupõe, se entre eles a regra é a falta de brios e de hombridade, então, convenhamos, o Congresso Nacional está de fato prestes a perder o status de uma verdadeira instituição. Está se transformando numa organização qualquer, fadada a perder o respeito dos cidadãos. 


*BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, É SÓCIO­-DIRETOR DA CONSULTORIA AUGURIUM. SEU ÚLTIMO LIVRO É 'TRIBUNOS, PROFETAS E SACERDOTES – INTELECTUAIS E IDEOLOGIAS NO SÉCULO 20' (COMPANHIA DAS LETRAS)

Fonte: O Estado de S. Paulo (10/04/2016)
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RADICALISMOS
(ANGELA ALONSO)

"O feminismo é um câncer." "O Holocausto realmente aconteceu?" Frases nesta linha saíram da boca, ou melhor, do Twitter de Tay. Você não sabe quem é? Não tem importância, Tay já não existe. Viveu míseros quatro dias. Era um robô interativo da Microsoft, criado para se comunicar com o público jovem. Morreu graças a seu sucesso.
A empresa sacrificou Tay por conta de sua empatia com usuários do Twitter, em cuja convivência se converteu em racista, xenófoba, machista, isto é, em eleitora potencial de Donald Trump ou Jair Bolsonaro.
Tay serviu de esponja e espelho para fenômeno em alta: a radicalização de posições políticas. As novas tecnologias circulam juízos peremptórios e informações sem checagem. Como na vida "real", laços virtuais se constroem entre os assemelhados em opiniões, aspirações, gostos. Mimetismo de "likes" e "shares" instantâneos, ânsia de pertencimento que suprime o raciocínio complexo, apostos e adversativas –quem se aventura incorre num pecado, o "textão". O alarido é por apreciação definitiva, a favor ou contra, sem meio-tom.
A radicalização política cria cercas de arame farpado no mundo virtual como naquele estrangeiro a Tay, o da convivência face a face, em carne e osso. E derrama sangue –Paris e Bruxelas, Turquia e Paquistão o testemunham. No Brasil, produz tensão que se apalpa com os dedos.
"Radicalização" está longe de ser termo unívoco. Basta ir ao "Aurélio" –digo, ao Google. O radical do século 19 ficava à esquerda dos liberais: pró-reformas igualitárias e uso cirúrgico da violência, como pregavam os anarquistas de que trata Benedict Anderson no livro "Sob Três Bandeiras: Anarquismo e Imaginação Anticolonial". Radicais por contraponto ao outro lado da balança, tão saliente na vida brasileira, o conservadorismo.
Mas ser radical também é ir à raiz. Antonio Candido, em ensaio chamado justo "Radicalismos", comenta grandes do pensamento brasileiro –Manuel Bonfim, Joaquim Nabuco, Sérgio Buarque de Holanda– que desvelaram os alicerces de nossa formação social.
Radicais do pensamento, como esses, privilegiam o diagnóstico acurado das causas dos problemas, ao passo que os radicais da ação, o objeto de Anderson, vão logo às vias de fato. Qual desses tipos grassa no Brasil hoje? Dispensa esforço detectar a engorda dos radicais da ação e a anemia dos radicais do pensamento.
Nos protestos pró-governo ressurgiu ativista que parecia morto como Tay, o radical de esquerda. Voltou sua estética, sua imagética, suas palavras de ordem, sua orientação distributivista. Mas sem o distintivo, segundo Candido, dos radicais clássicos: a originalidade de diagnóstico e prognóstico.
Se neste lado há escassez, no outro, há penúria de pensamento novo. Domina a opinião pública hoje este tipo paradoxal, espécie de oximoro: o radical de direita. Seu ar da graça se deu em faixas chulas e pueris em protestos que extrapolaram o ataque ao governo e à pessoa da governante, para incidir sobre direitos adquiridos e liberdades individuais.
Você o conhece: vocifera em programas de TV, blogs, ruas, incapaz de tolerar os distintos de si, seja em gênero, classe, raça, orientação sexual, religiosa ou partidária. Na sua lógica, o diferente é um desclassificado, cuja existência ofende. Alguém com quem não pode conviver e que quiçá possa eliminar, numa materialização dos reality shows.
Essa indigência da ação tampouco acha estofo no pensamento. Esses radicais –ou liberais, como sua versão mais culta preferiria– estão a dever uma exposição apurada dos fundamentos de suas posições. Faltam análises sofisticadas, dignas do contraponto com Sérgio Buarque, ou que honrassem um Oliveira Vianna.
Multiplicam-se os raciocínios chinfrins, vez ou outra embalados em erudição –inclusive em artigos neste jornal. Simplificação extrema do pensamento escancarada por jovens incautos o bastante para explicitar o maniqueísmo –caso do mocinho que declinou seu modelo norteador: os Power Rangers.
É uma intolerância singela "contra-tudo-que-está-aí". Raciocínio de prazo e perna curtos que impede de avistar o "tudo-o-que-está-por-vir".
Estes novos radicais de direita, qual Tay, apenas destilam bílis. À diferença dos de esquerda, desconhecem liderança. São criaturas antes miméticas que reflexivas, mas aptas a se rebelar contra seus criadores. Tay o fez: achacou a Microsoft sem clemência. E, ao contrário do robô da Microsoft, os nossos têm um defeito de fabricação: carecem do botão de desligar.

Fonte: Folha de S. Paulo (10/04/2016)