sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Filhos da Dívida

No Brasil, a dívida nasceu antes do País. A certidão de nascimento é o documento expedido por D. João VI, em 10 de novembro de 1812, que autoriza o conde de Palmela a levantar empréstimo para o “estado do Brasil” no montante de 400.000 libras esterlinas junto à “quaisquer capitalistas” da praça de Londres a ser garantido pela renda de uma ou de mais alfândegas do Brasil.

Pertenço à geração que cresceu ouvindo que o Brasil estava à beira do abismo. Abismo esse que mudava de nome, mas era sempre uma ameaça ao progresso e à nossa soberania. A saúva que devorava a lavoura, o opilado analfabeto, indolente da zona rural, imortalizado pelo gênio de Lobato na figura do Jeca Tatu e, por fim, a dívida nacional,foram apontados entre outros como fatores impeditivos do desenvolvimento brasileiro.

O endividamento foi sempre um obstáculo no nosso caminho, assumindo proporções variáveis ao longo do tempo, aparentemente superado pela contratação de novos empréstimos, o que gerou em alguns momentos a insolvência do governo.

Ao longo da nossa história, sucessivas administrações perdulárias, no Império e na República, governaram com orçamentos desequilibrados em meio a prolongados períodos inflacionários. Era o fantasma da instabilidade econômica que nos rondava persistente. As consequências disso foram a desconfiança internacional e a sujeição aos centros financeiros estrangeiros, os quais buscávamos amiúde. Tal dependência constituía um entrave ao nosso crescimento e nos colocava na mira dos investidores externos atentos à fragilidade das nossas finanças.

Até que fossem organizadas as instituições financeiras multilaterais o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Interamericano do Desenvolvimento (BID) e o Banco Mundial (BIRD), os governos se financiavam junto à City, ou seja, os banqueiros londrinos, e mais tarde também os de Nova York. A concessão dos créditos e as condições das operações dependiam do risco das mesmas, avaliado em rigorosas auditorias. Não era incomum a visita de missões econômicas estrangeiras ao País para apurarem o estado das finanças públicas face a solicitações de empréstimos. Não raro a contratação do empréstimo se vinculava à aceitação de medidas fiscais e macroeconômicas, impostas como condicionantes inarredáveis de conteúdo oneroso sob o aspecto social e político.

Várias foram as missões econômicas que vieram ao Brasil na primeira metade do século XX. A missão Montagu, assim chamada devido o nome do seu chefe Edwin Montagu, ex-secretário de estado foi uma dessas expedições precursoras. Aqui esteve em 1927, enviada a mando de banqueiros para analisar a viabilidade de um empréstimo no valor de 25 milhões de libras solicitado aos Rothschild pelo governo brasileiro. O financiamento destinava-se a “liquidar a dívida flutuante e colocar as finanças brasileiras em ordem”. A grande dívida externa do País, aliada à baixa cotação dos seus títulos nos mercados europeus, justificavam a prudência, argumentavam eles. Éramos reféns dos banqueiros. A situação delicada em que nos encontrávamos fica clara nas palavras do embaixador inglês no Brasil: “Se ele (Bernardes) é forçado a implorar por dinheiro, poderá ter que engolir a pílula do conselho estrangeiro”.

A década de 20 foi marcada pelo impacto da Primeira Guerra Mundial que pôs termo à crença idílica do progresso contínuo, sem percalços. À explosão da demanda por bens de consumo, reprimida durante quatro anos, seguir-se-ia uma retração econômica determinada pelo empenho dos governos em assegurarem a estabilidade da economia. Para tal, não hesitaram em adotar medidas inflexíveis com o objetivo de equilibrar o orçamento, retornar ao padrão ouro, aumentar a receita e combater a inflação. Não obstante o baixo grau de integração das economias nacionais, a nova política repercutiu de forma grave sobre os países periféricos. “Uma trilha de devastação”, foi como Joslin denominou o efeito arrasador daquelas ações sobre a América Latina, aí incluído o Brasil.

A despeito da superação da crise, com a retomada da expansão da economia mundial, as dificuldades permaneciam. Quando Arthur Bernardes assumiu a presidência, recebeu um legado preocupante. O relatório do Banco do Brasil, datado de Abril de 1924, afirmava enfaticamente que 1923 havia sido “o ano cambial mais terrível da nossa história”.

A eleição dele, devido às condições precárias das finanças do Brasil, foi precedida por um pacto entre os dois maiores estados, São Paulo e Minas Gerais, celebrado por seus presidentes, Washington Luis e o próprio Bernardes, respectivamente, que previa um rigoroso programa de saneamento financeiro. A proposta incluía a consolidação da enorme dívida flutuante, cujas exigibilidades estavam em sua maioria em mãos do Banco do Brasil; reorganização da administração fazendária, para reformar a elaboração e a execução do orçamento e a contabilidade pública; a criação de uma poderosa inspetoria geral, para controlar a receita, e de um banco emissor; a defesa do café. A luta obstinada para corrigir o déficit público levou à paralisação de obras, inclusive a construção de barragens no Nordeste, iniciadas no governo de Epitácio Pessoa, razão de grande insatisfação regional.

A colheita de informações e o fácil acesso às autoridades permitiu a elaboração de um relatório minucioso “após estudos sistemáticos, conscienciosos e profundos”, segundo está na mensagem presidencial de 1924. O diagnóstico e as recomendações que o integram estão em consonância com a orientação ortodoxa de inspiração liberal imprimida pelo governo, cuja base teórica era o padrão ouro. A preocupação maior do governo era alcançar o equilíbrio orçamentário, combater a inflação e restaurar o crédito do Brasil.

Admira a semelhança das sugestões inglesas, oferecidas com certo recato, com as receitas impostas ao País pelos mensageiros do FMI, anos mais tarde, quando transitavam desenvoltos nos telejornais e ministérios. Essas cenas, recorrentes nos anos 80, refletiam nossa vulnerabilidade, marcada por elevada dívida externa e a crise no balanço de pagamentos. Foi quando se tornaram freqüentes as cartas humilhantes dirigidas pelos ministros da fazenda à direção do fundo pedindo perdão (waiver) por haver descumprido metas e cláusulas contratuais.

A publicação do documento no Diário Oficial foi antecedida de intensa negociação entre o governo e a comissão, tendo esta se recusado a omitir a menção contrária à política em vigor para o café.

Em resumo, as principais recomendações foram as que se seguem:

- Reformulação da lei que rege o orçamento, de modo a, entre outros itens, suprimir a “cauda orçamentária” (atribuição ilimitada de créditos adicionais sem lastro financeiro).

- Venda de ativos do governo para quitar a dívida, que abrangia a alienação do Banco do Brasil, Lloyd e ferrovias.

- Assegurar que a renda seja suficiente para pagar a despesa de cada ano, excedendo-a mesmo. Todo saldo destinar-se-á ao pagamento da dívida.

- Adiamento das despesas de capital, salvo as urgentes.

- Empréstimos deverão ser destinados exclusivamente a investimentos.

- Utilização de peritos para examinarem a consistência técnica e financeira de projetos apresentados no curso do exercício fiscal.

- Constituição de comissão com a responsabilidade de reduzir a despesa do governo, mormente quanto ao funcionalismo, que julgavam excessivo.

- Maior autonomia para o Banco do Brasil, cuja gestão consideravam influenciada pela política.

- Fim da isenção do imposto sobre a renda da agricultura, por ser a “indústria mais lucrativa”.

- Instituição de um tribunal ferroviário, de composição mista, com a finalidade de dirimir conflitos, sobretudo quanto ao reajuste das tarifas e a classificação de mercadorias.

- Alteração da política do governo em relação ao café, cuja defesa deveria ficar a cargo dos produtores.

- Expansão urgente dos transportes para desenvolver o grande potencial do País.

- Face à escassez de capital nacional, recomenda a atração de investidores estrangeiros associados aos brasileiros.

Dois pleitos da comissão foram vistos com restrição pelo governo nas pessoas do Ministro da Fazenda e do Presidente da República.

Sampaio Vidal recusou liminarmente a permanência de um consultor inglês junto ao ministério a título de acompanhar a implantação e continuidade das medidas propostas.

No último encontro com Bernardes, às vésperas do retorno a Londres, Montagu pressionou o presidente para que este concordasse com a venda do Banco do Brasil. Uma concordância matreira embutia a convicção de que a opinião pública e os políticos rejeitariam a idéia.

Finalmente, concluem os signatários pela rápida liberação do empréstimo, tendo em vista a disposição do governo de aplicar medidas de austeridade. O embargo informal do governo inglês à contratação de empréstimos com governos estrangeiros adiou sua concretização para 1926.

Com o fracasso do empréstimo, foram comprometidos dois objetivos fundamentais do governo: a consolidação da dívida flutuante e a criação de um Banco Central destinado a revalorizar a taxa de câmbio. Pressionado pela inflação e o déficit público, com o apoio de um grupo de políticos conservadores, liderados pelo deputado mineiro Antonio Carlos, ex-ministro da Fazenda, Bernardes tomou medidas administrativas e legislativas deflacionistas que levaram ao pedido de demissão do ministro da fazenda e do presidente do Banco do Brasil.

A divulgação do relatório suscitou, como não poderia deixar de ser, discussões na imprensa e no parlamento. De um modo geral, as críticas mencionavam a aceitação dos seus termos como uma humilhação, vindo a se concentrarem em temas delicados, como a venda do Banco do Brasil e outras empresas públicas. Nesse clima, o embaixador britânico chegou a afirmar que a oposição assumia a postura de que “o relatório é uma tentativa de fazer do Brasil uma colônia inglesa”.

A publicação do documento deu a conhecer as condições indispensáveis a obtenção do empréstimo, o que contribuiu para reduzir a oposição ao projeto. A manobra colocou Bernardes ardilosamente na condição de mediador entre os credores e o Congresso brasileiro, permitindo-lhe obter concessões de ambas as partes.

A lista de recomendações da comissão Montagu, lida com atenção, permite identificar o embrião de propostas só mais tarde admitidas. Sinal de que, em economia, há pouco de novo sob o sol, além da atualidade de conceitos simples e eficazes nem sempre reconhecidos.

O tribunal ferroviário seria a agência reguladora de hoje; a associação de capitais, as joint ventures contemporâneas; a produção de saldos orçamentários o superávit primário tão cobrado dos gestores públicos; a privatização de empresas estatais, a panacéia resgatada pelo neo-liberalismo; os funcionários públicos a fonte de todos os males.

A renegociação das dívidas de estados e municípios em 1997, que organizou um passivo que crescia assustadoramente, e o advento da lei de responsabilidade fiscal deram início a uma era de equilíbrio econômico que o País há muito não conhecia.

A continuidade política ensejou a liquidação da dívida externa, o acúmulo de reservas robustas e nos tornou credor do FMI. Confesso ter me imbuído de orgulho patriótico, ingênuo talvez, ao testemunhar o Brasil alçar essas conquistas.

A estabilidade econômica é um patrimônio da nação pelo qual urge zelar em sua constância. Grandes empreendimentos seduzem governantes os quais, na ânsia de realizá-los, adoecem as finanças, impondo ao povo sacrifícios desnecessários. Mesmo o austero Bernardes, no curso das discussões com os ingleses, chegou a insinuar pedido de empréstimos para realizar o sonho da indústria siderúrgica e da transferência da capital para o interior, ambos descartados de forma sutil pelo chefe da delegação.

A explosão da dívida pública que faliu a Grécia e colocou outros países na fila é a maior evidência de que o monstro continua vivo. Ao menor descuido, irrompe furioso.

A advertência, inscrita no já mencionado relatório do Ministério da Fazenda, permanece atual. É um alerta para o risco à “ansiedade indômita de crescer depressa” e à “política de iniciativas arrojadas” quando mínguam os meios para realizá-las.

Por igual não custa atentar para o alerta que veio no “Retrospecto Comercial do Jornal do Comércio” (1925): “No Brasil temos tido, em grande escala, a corrente que prega a necessidade de uma política dinâmica de propulsão econômica à custa de todas prodigalidades, até do próprio papel moeda.”

* Artigo publicado no Relatório da Missão Inglesa / Lúcio Gonçalo de Alcântara, organizador. - Ed. Fac-Similar. - Fortaleza: FWA, 2010.

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