quinta-feira, 26 de abril de 2007

Discurso pronunciado no lançamento do livro o "Rio da minha infância"

Concluída minha missão à frente do governo do Estado, após breve período de descanso em Portugal, voltei-me para duas atividades com as quais tenho me envolvido ao longo de minha vida tanto quanto me permitiram honrosas e absorventes funções que vim a exercer. São elas, a literatura como fonte de prazer desfrutado com amigos em companhia dos livros, e a medicina como instrumento de prestação de serviços à comunidade. Com mais tempo disponível para o convívio com os intelectuais tenho aproveitado todas oportunidades surgidas para retomar projetos literários adormecidos, cuidar da biblioteca e por em dia leituras atrasadas. Tudo isso em um contexto de confortadora convivência familiar.

Afastado há muito da prática da medicina, nunca a esqueci, e a retomada de encargos administrativos em caráter voluntário à frente do Instituto do Câncer do Ceará, instituição filantrópica sexagenária presidida por meu pai até falecer, me reaproxima do meio médico ao mesmo tempo que enseja ocasião para que continue a prestar serviço à comunidade. Aliás esta festa, que se realiza por reiterada insistência de amigos, constitui uma síntese entre as duas áreas a que me dedico majoritariamente no momento, pois lanço uma publicação em conjunto com minha sobrinha Joana França destinando o produto da venda à Casa Vida da Rede Feminina de Combate ao Câncer meritória iniciativa voltada para o acolhimento de pessoas de fora em tratamento no Instituto.

Esta publicação, que casa texto e fotografia, está pronta há bastante tempo e não pretendia lança-la festivamente não fora persistência do meu amigo e grande poeta Carlos Augusto Viana acolitado entre outros por Sérgio Braga, Marcos Aurélio, Humberto Cavalcante, Erle Rodrigues. A estes e aos demais, meu comovido agradecimento.

O generoso interesse do Carlos Augusto não parou aí e fluiu nas palavras de encômio minha despretensiosa obra. Com ela dou seguimento à realização de um projeto editorial desenvolvido em parceria com a Joana iniciado com o livro “A casa da minha avó” e que une duas linguagens, o texto e as fotos. Ambas publicações vinculadas ao passado, à memória ou o que dela vem superfície.

Tudo começou após o imprimatur da Maria Beatriz a cujo rigor crítico submeti minhas primeiras produções. "O rio da minha infância” é uma pequena amostra de minhas lembranças e da minha relação com o rio que me banhou menino. Não é livro porque não fica de pé, não é poesia, dirão os inimigos do verso livre pois não há rima. Mas é, isso lhes garanto, fragmento da alma, retalho da memória, emoção, afetividade, evocação que certamente irá tocar a quantos tenham um dia mergulhado criança num rio inesquecível.

Mais que acidente geográfico, acidente sentimental, já muito cantado em prosa e verso mas sempre disponível para quem deseje revelar essa relação única, pessoal, intransferível. Em decorrência de muitas viagens que fiz, a trabalho ou como turista, conheci rios famosos e até naveguei em alguns deles no Brasil e no exterior. Entre Koenigswinter e Colônia percorri o Reno em dia quente e ensolarado refrescado pelo vinho azul de tanta ma fama; naveguei nos canais de Amsterdam jantando à luz de vela nos barcos turísticos; vi o Nilo cortando o Cairo, bobo como todo turista, assistindo um espetáculo falso de dança do ventre; olhei incrédulo o Jordão, imaginando como possa aquele fio de água estar à altura dos cenários descritos nas sagradas escrituras; admirei o Sena poluído pelas horríveis barcaças de areia que me distanciavam da imagem romântica de Charles Trenet entoando “La Seine”:”elle coule, coule, elle roucoule, coule/elle chente le jour, la nuit”.

Vi o Tâmisa cruzado pela ponte do milênio, ícone de uma nova era. Mas gostaria de ter encontrado o “Ouse”, riozinho desconhecido no qual Virginia Woolf seu gênio e a alma atormentada. Singrei o Yang Tse na trepidante Shangai, congestionado de embarcações, que engurgitada de tudo vive a China, em cujas margens o colonizador perverso plantou um jardim interditado à chineses e cães. Encontrei o Tejo em Toledo, acanhado. Revi-o majestoso em sua foz de onde partiram intrépidos marinheiros que descobriram meio mundo.

Estive no choupal olhando por cima do Mondego para apreciar na margem oposta a “Quinta das Lágrimas” cenário do drama de Inês de Castro e em Amarante, também no querido Portugal atravessei a ponte romana sobre o Tâmega construída pelo santo do meu nome, Gonçalo. No Douro vi o prodígio de aço de Eiffel ligando as duas margens e os tradicionais rabelos flutuando para deleite dos turistas. Em Roma, passei sobre o Tibre por uma ponte monumental para encontrar o Papa no estado do Vaticano. Da ponte Vecchia , assediado por mercadores de jóias de seculares tradições, debrucei-me sobre o Arno para lembrar Dante, o florentino genial que não chegou a possuir como eu a sua Beatriz.

No Brasil, extasiei-me com o Amazonas, suas lendas, e o abraço com o Negro; o São Francisco, meu Rubicão, cujas margem atingi em Ibotirama transpondo-o para chegar a Brasília para a aventura definitiva da política investido no mandato de Deputado Federal. Não me cabe dizer se venci, mas afirmo ter muito pelejado. Maravilhado, contemplei o espetáculo das cataratas de Iguaçu por mais que seja apenas um rio que tomba no dizer de Eça de Queirós. E o que dizer dos nossos rios, cearenses, nordestinos? Irregulares, inconstantes, espasmódicos, feitos mais de pedra e areia que de água. O Jaguaribe, duas vezes pinçado para conter a hemorragia na denúncia lírica do poeta Demócrito Rocha. O Salgado e seu boqueirão famoso, o Acaraú, berço de nobrezas sertanejas, o Curu, testemunha de feroz batalha entre índios e espanhóis, ainda hoje motivo de controvérsia entre estudiosos. E o meu rio, meu modesto rio? Quase anônimo, minha afeição fluvial permanente, que nunca deixou de correr dentro de mim e hoje emerge neste despretensioso trabalho.

O que sei dele já o disse, mesmo que sem talento e graça. Diante de embarcações majestosas que encontrei mundo afora aflorava a lembrança daquelas canoas modestas calafetadas de alcatrão, e assim mesmo inundadas, sangradas por cuias manuseadas diligentemente. Cruzei meu rio, não para esquecer, pois não é o Lethes da mitologia, mas para lembrar. Fui barqueiro, não para levar os mortos como Caronte, mas para lembrar aos vivos que as águas do tempo não são profundas bastante para sepultar emoções e lembranças. Aos que aqui vieram desejo agradecer emocionado, pois revelam amizade com suas presenças carinhosas o que me sensibiliza definitivamente.

Um comentário:

Angela Araújo disse...

Caro Sr. Lúcio Alcântara,

Admirável o seu texto. Viajei, novamente, pelos livros e pelos lugares nele citados.

Parabéns!

Um abraço,
Angela Carvalho Araújo