terça-feira, 8 de novembro de 2016

A política das ruas

Persistiram os patriotas, hibernaram os autonomistas, 
acordaram os socialistas.
(Angela Alonso)



Desde 2013, o Brasil vive conjuntura de crise. Forças sociais puxam o país em direções opostas em jornais, sites, tribunais, Parlamento e na rua.
O período é curto, mas se quebra em três ciclos de protestos. Do primeiro ninguém esquece, o fatídico junho de 2013, que pegou governo e partidos de calças curtíssimas. De bate-pronto, muitos exaltaram o nascimento de movimento progressista. Mas a cena era mais complicada —antes um mosaico de pequenos movimentos independentes, distribuídos em dois grandes campos.
Grupos autonomistas, puxados pelo MPL, deram a ignição, com protestos performáticos (catracas queimadas), horizontalismo (negação da hierarquia de gênero e de liderança política), estética anarquista e símbolos das manifestações por justiça global, com defesa de práticas autossustentáveis, comunitárias e libertárias.
Atarantados, os movimentos sociais de viés socialista engrossaram. Linha de frente dos protestos desde a redemocratização, trouxeram seu roteiro de costume: bandeiras vermelhas, tônica redistributiva, organização vertical.
Essas duas frentes à esquerda ganharam companhia. Emergiu um campo de manifestantes independentes, sem coordenação ou experiência política, atraídos pela internet ou pelo noticiário. Mais expressivo que propositivo, içou a bandeira nacional. Cartazes, roupas, pinturas faciais recuperaram os símbolos nacionalistas dos movimentos pela redemocratização e pelo impeachment de Collor.
Eis o resumo de 2013: três grupos repartidos em dois campos polares. Nas trincheiras autonomista e socialista, demanda por expansão e melhora de políticas sociais, transporte, saúde, educação. No front patriota, críticas à hipertrofia e ineficiência do Estado, aos políticos e retomada da divisa do Fora Collor: "ética na política".
Embora se dissessem apartidários, orientaram-se todos pelo sistema político, postando-se à esquerda ou à direita do governo do PT. A efetiva novidade de 2013 foi que à mobilização por expansão de direitos, usual desde a redemocratização, juntou-se clamor liberal, pró-mercado, anti-Estado.
Esse campo patriota ganhou ossatura e volume num segundo ciclo de mobilização em 2014, enquanto socialistas e autonomistas esmaeciam. Três associações lideraram os eventos: a liberal Vem pra Rua, o Movimento Brasil Livre, mais à direita, e, no extremo, o Revoltados On Line. Em março de 2015, 54 grupos similares se albergaram na Aliança Nacional dos Movimentos Democráticos, fincada em Estados tucanos, sobretudo São Paulo, e com suporte do empresariado.
O foco se fechou na contestação ao governo Dilma, expressa em retórica moralizadora de dois sentidos: a afirmação da moralidade pública (anticorrupção) e o moralismo, reiteração de valores da sociedade tradicional (como pátria, religião, família), óbvios nos atos encerrados com rezas e hino nacional.
Farpas contra "políticos em geral" confluíram na demanda por impeachment da presidente. E a pasteurização levou à busca de lideranças fora da política profissional. Na mesma operação simbólica em que Lula virou Pixuleco, o juiz Moro sagrou-se salvador da pátria.
O terceiro ciclo explodiu mais recentemente, quando a rua passou a objeto de disputa. Persistiram os patriotas, hibernaram os autonomistas, acordaram os socialistas. Os aliados tradicionais do PT, os sindicatos, e duas novas coalizões, a Frente Povo sem Medo (cerca de 30 movimentos) e a Frente Brasil Popular (com mais de 70 organizações), recuperaram a pauta petista dos anos 1980: defesa do Estado de direito ("não vai ter golpe"), pró políticas sociais e combate ao oligopólio dos meios de comunicação ("o povo não é bobo, abaixo a Rede Globo"). Essa foi a linha dos atos anti-impeachment e em desagravo a Lula.
O que nasceu junto-e-misturado decantou em campos apartados: um anti-PT, outro antigolpe. A cerca invisível de 2013 virou muro de concreto nas votações do impeachment na Câmara e no Senado.
Ao longo desses ciclos de protestos, o protagonismo nas ruas deslizou da nova esquerda autonomista para a nova direita patriota, com a esquerda socialista desafiada pelos dois lados.
O fim do processo institucional do impeachment remata essa febre de manifestações?
O efeito dos protestos em sequência é que o novo governo nasceu em sociedade mobilizada. O campo socialista não o reconhece e segue ebulitivo. Já os patriotas se recolheram, uma vez atingido o objetivo de desalojar o PT do poder. Mas não celebraram Temer.
Os dois campos tomaram o espaço público para criticar o governo em 2013 simultaneamente, mas por razões diferentes. Tampouco precisam de pauta positiva compartilhada para tornar a fazê-lo. Basta um inimigo comum. A vaia que recebeu na Olimpíada sinaliza que Temer é bom candidato ao posto.

Fonte: Folha de S. Paulo, ilustríssima, 25/09/2016.

A dor de Lázaro

Suspeito que a civilização pressupõe uma razoável 
dose de infelicidade como condição necessária
(Luiz Felipe Pondé)


 O tema da redenção me encanta há muitos anos. Sou um descrente encantado com a tradição bíblica. Para almas apressadas, pode parecer uma contradição. Prefiro ver como uma espécie de pequena modéstia diante de tamanha beleza contida nas temáticas bíblicas.
Entre as várias histórias que me encantam está a de Lázaro. Não propriamente como a ideia do milagre de trazer alguém da morte, o que tendo a duvidar como fato, mas, sim, como metáfora da maravilhosa experiência que é, em meio à vida, você sentir-se vivo depois de muito tempo em que se sentia morto. Aliás, parte dessa ressurreição é tomar consciência dessa condição de morto em que se encontrava. Esta é a dor de Lázaro. Fosse inventada uma máquina para medir a sensação de estar morto em meio à vida, ela seria um blockbuster das tecnologias da informação.
Suspeito mesmo que a civilização pressupõe uma razoável dose de infelicidade como condição necessária. O maravilhoso livro de Freud "O Mal-Estar na Civilização" (uma das peças literárias necessárias para se entender o século 20) trata dessa condição de mal-estar como "resto" e condição do "processo civilizador", nos termos do sociólogo Norbert Elias. Acomodar os anseios numa fina equação que enlaça afetos num sistema de obrigações sociais garante a continuidade da espécie. Penso mesmo que este trabalho tenha ocupado muitos milênios de nossos grandiosos ancestrais no Alto Paleolítico. Fosse eu ter uma religião hoje, seria o culto de nossos patriarcas paleolíticos.
Assim sendo, a civilização implica uma certa "dose de morte" em meio à vida. Lázaro estava morto e voltou à vida. Como podemos estar mortos em meio à vida? É possível termos uma experiência de Lázaro na vida?
Uma das formas mais comuns de morte é pensar que não há mais horizonte a não ser o cotidiano instituído: a mesma casa, o mesmo trabalho, a mesma padaria, os mesmos rostos, as mesmas lágrimas, o mesmo envelhecimento, o mesmo corpo no sexo. Um dos segredos da juventude é, exatamente, a possibilidade de ter um futuro desconhecido a ser explorado. Portanto, a ideia de que tudo que havia para ser conhecido em sua vida já o foi é, seguramente, uma forma de morte em vida. O amadurecimento, muitas vezes, implica uma certa dose de descrença na possibilidade de ressurreição em vida. Como amadurecer sem morrer?
Uma das razões para a morte em vida é a dureza da sobrevivência material. Nesse campo, a vida não tolera "iniciantes". Qualquer erro e ela o castigará sem pena, transformando você num "loser" cheio de ressentimento e inveja daqueles que tiveram mais sorte ou, simplesmente, daqueles que nasceram com mais talento do que o seu pequeno quinhão de pobreza de espírito. E a vida profissional, no mundo contemporâneo, carrega muito mais significado do que "mero" ganho material, uma vez que passamos a maior parte do tempo envolvidos com ela. A vida profissional é, quase sempre, para a maioria de nós, uma certa dose de morte em vida.
Outra dose de morte em vida é o desencanto com o amor. A ideia de que o amor é para iniciantes ou desavisados com certeza nos garante uma vida longa sem sobressaltos. Infelizes são aqueles que caem vítima dessa doença que assola seus corações com uma tristeza infinita, instaurando o reino de uma inapetência para o cotidiano sem amor e afogado em demandas. Tranquilos são aqueles que se mantêm firmes em seu trajeto rumo ao envelhecimento sustentável.
Morrer em vida é, seguramente, se afogar em rancor, inveja, covardia. Afetos esses que, facilmente, se constituem em razões para conter o impulso de Lázaro em direção ao abandono do repouso na morte. Fiódor Dostoiévski (século 19) via em Lázaro morto a figura do homem assolado pelo medo da vida, assolado pela medo de correr o risco de ser perdoado por suas misérias porque, para ressuscitar, há que reconhecer-se morto primeiro. Só aquele que se reconhece morto poderá ver a imagem de Lázaro refletida em seu espelho. Esse rosto marcado pela dor da morte e pelas dores de parto que a ressurreição causará em sua vida.

Fonte: Folha de S.Paulo, ilustrada, 24/10/2016.