sábado, 21 de janeiro de 2012

Crise

A crise ultrapassou Wall Street. Chegou aos seus adversários.

O movimento contestador Ocupe Wall Street anunciou estar sem dinheiro para continuar os protestos contra o poderio do sistema financeiro.

Pesquisa

Com 59% de bom e ótimo no primeiro ano Dilma supera Lula. Considerado o mesmo intervalo de tempo a afilhada supera o padrinho.

Cuidado que ciúme anda a galope!

Degola

Quando não pode tirar a cabeça Dilma corta o braço.

Foi o que aconteceu no DNOCS. Permaneceu o Diretor Geral e foi exonerado o administrativo.

Rio Grande do Norte 1 x 0 Ceará.

Copa

A Fifa divulgou que os preparativos para a Copa na Rússia, que ocorrerá em 2018, estão mais adiantados que no Brasil, sede da competição de 2014.

Depois há quem ache injusta a fama de que brasileiro deixa tudo para a última hora...

Turismo

No ambiente de fantasia da Disney, diante do castelo, Obama protagonizou uma cena de campanha. A Cinderela cortejada pelo presidente tinha um nome: turistas brasileiros.

Aproveitou a ocasião para anunciar maior facilidade na concessão de vistos a brasileiros que desejem viajar aos Estados Unidos.

A medida tem por objetivo fortalecer o turismo, importante fonte de receita, dinamizar a economia e criar empregos no país.

A decisão do presidente atende reivindicação do setor que há muito pressionava por isso.

Na verdade obter um visto americano é algo que beira o suplício. São poucos os centros emissores, longa a espera e dispendiosos os deslocamentos.

Não obstante as dificuldades a América é um destino crescente para turistas brasileiros.

O ano passado 1,2 milhão de brasileiros foram aos Estados Unidos e deixaram por lá U$ 5,9 bilhões que equivale a um gasto de U$ 4.940 por visitante.

Os brasileiros estão entre os mais gastadores ficando atrás apenas de chineses e indianos.

A invasão brasileira beneficia sobretudo a Florida revitalizada pelo dólar verde amarelo.

O vento favorável na economia e a formação de uma nova classe média favorecem o fluxo americano.

O custo Brasil, que encarece o turismo interno, se encarrega do resto.

Saiba mais no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 29/12/11

Frivolidades

É uma tristeza ver o interesse despertado e o espaço ocupado na internet durante a semana por notícias como, Luisa que voltou do Canadá, a falsa grávida e a expulsão de um marmanjo do BBB...

Merecemos coisa melhor!

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Definição

Avô, experimento as delícias do que poderia se chamar paternidade desossada.

Humberto Werneck, na crônica Papo de Avoado, jornal O Estado de S. Paulo, edição de 15/01/2012

Síria

A situação da Liga Árabe é a de um médico fumante que recomenda ao seu paciente largar o fumo, enquanto ele tem um cigarro na mão.

Bashar Assad, ditador sírio, acusando o bloco de hipocrisia.

Custos

Está mais caro viver no Brasil que nos Estados Unidos. Quem diz isto é o FMI.

Dados de 187 paises-membros do FMI relativos ao ano passado apontam fato considerado anormal para um país emergente.

O Brasil é o único emergente onde o custo de vida é mais elevado que nos Estados Unidos. Vida mais cara nos paises ricos decorre de preços mais altos nos serviços em razão da renda mais alta e do custo maior da mão de obra.

Os preços dos produtos industrializados nos diferentes paises tendem a convergir devido à possibilidade de importação.

Segundo o economista Armando Castelar o fenômeno brasileiro se explica pela grande valorização da taxa de câmbio.

Saioba mais no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 15/01/12

Cristina

O câncer da tireoide da presidente argentina Cristina Kirchner afinal não era. O exame da peça cirúrgica revelou um tumor benigno.

O fato deixou mal a medicina argentina que já deu ao mundo dois prêmios Nobel. A imprecisão diagnóstica inicial e a manipulação política da comunicação da doença contribuiram para o erro diagnóstico. A opinião contrária de uma médica da equipe não foi considerada.

Cristina doravante terá que tomar hormônio, para suprir a falta da glândula, pelo resto da vida. Não é o primeiro caso em que a doença de uma pessoa famosa termina em trapalhada médica.

O episódio foi investigado pelo respeitado médico neurologista, jornalista, Nelson Castro, que o revelou através da imprensa.

Saiba mais no jornal O Estado de S. Paulo, edição de 15/01/2012

Serpente

Estou vendo a serpente nascer e não posso me calar.

Eliana Calmon, corregedora do Conselho Nacional de Justiça dizendo que não vai recuar na investigação do judiciário.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Comércio

Lideranças do comércio cearense reclamam do crescimento do setor no período de outubro/novembro que teria sido de 3,8% sobre 2010.

Esquecem que aquele ano foi excepcional e que o PIB de 2011 não chegou crescer 3%.

A economia arrefece sob os efeitos da crise financeira internacional que não dá sinais de amainar.

Saiba mais no Diário do Nordeste, edição de 13/01/2012.

Ministério

A prometida reforma ministerial virou um mero ajuste para preencher vagas dos que saem para disputar eleições.

O Ceará ficou de fora.

Quem com ferro fere com ferro será ferido

Indústria

O ano é novo; os maus resultados são do velho.

O Ceará teve o pior resultado entre os estados brasileiros na criação de empregos industriais. Quem diz isto é a pesquisa do IBGE que registrou desempenho de -1,7%.

Pernambuco e Bahia ficaram acima da média nacional e alcançaram 4,8% e 2,0% respectivamente.

Saiba mais no caderno de economia do Diário do Nordeste, edição de 14/01/12

Educação

De São Paulo vem uma proposta nova para a educação nas escolas públicas.

O governador Alckmin anuncia sua disposição de colocar nas salas de aula das escolas estaduais dois professores. Um deles atenderia aos alunos com dificuldades de aprender e, portanto, necessitados de reforço escolar.

Os órgãos de classe dos professores já se pronunciaram contra a medida.

Leitura

Ir é bom; voltar é melhor.

De retorno de viagem aos Estados Unidos retomo o blog.

Sem ter uma estatística afirmo que os americanos leem mais que os brasileiros. Contudo uma coisa me chamou atenção em Nova York, Miami e Orlando, cidades por onde andei.

Nos shoppings e oulets que visitei nunca encontrei uma livraria. No Brasil não há um centro comercial de dimensões razoáveis que não possua uma. A que se deve isso?

Seria o ambiente das livrarias um espaço desestimulador do impulso de comprar e por isso incompatível com a proposta dos shoppings centers?

A viagem de São Brandão - O paraíso na Terra - Parte II

6 – Cartografia Medieval – Fatos e Mitos


O Atlântico, o mar aberto, em contraposição ao Mediterrâneo, o mar cerrado, constituía um grande desafio a ser superado na Idade Média, sobretudo nos primeiros séculos. A cultura clássica, permeada por narrações tais como a submersão da Atlântida e as peripécias de Ulisses, terminou por impor limites além dos quais a navegação seria impossível. Após as colunas de Hercules, postadas no estreito de Gibraltar, do cabo Não, (“Quem passar o cabo de nam ou tornara nam”, João de Barros em Ásia. Primeira Década), do Bojador, estava o desconhecido, o mar tenebroso, cheio de perigos e mistérios. Ali acabava o mundo segundo a crença medieval. Vencê-los e conhecê-los foi a determinação do homem impulsionado pela curiosidade e a fé.


O aperfeiçoamento das técnicas de navegação e a dilatação do cristianismo permitiram a conquista do Atlântico no curso de um itinerário que a civilização registrou como uma combinação, às vezes indistinta, entre a certeza e o fantástico.

Foi, nesse mar, povoado de ilhas reais e imaginárias, vestígios da Atlântida, que navegantes aventureiros venceram temores para buscar o Paraíso e construir utopias.

Terras fantásticas, algumas mencionadas desde a antiguidade, cujo prêmio de encontrá-las era a vida em paz e harmonia no gozo de todas as delícias. Gregos e romanos já se referiam a ilhas míticas clássicas, a Atlântida desaparecida, de Platão, a Tule (centro do mundo), de Homero, as Afortunadas, “fortunate” dos romanos, situadas para além do mundo habitado “onde os antigos bárbaros tenham crido estavam os Campos Elíseos” (44:13) . Ilhas inspiram sonhos, sugerem repouso, felicidade, uma existência idílica à parte do mundo e sua agitação. Sedes ideais de utopias e nirvanas.

De um modo geral o cristianismo se valeu do conteúdo cultural da antiguidade para adaptá-lo a seus propósitos. O dinamismo do comércio, o progresso das técnicas de navegação e a fé na providencia divina lançaram o homem no Atlântico na epopéia das descobertas perdidas entre sítios imaginários frutos de lendas e da religiosidade dominante. Não se estranhe, pois, que Zurara, cronista oficial, acrescente às cinco razões que levaram o infante D. Henrique a demandar terras da África uma sexta, “raiz de onde todas as outras procedem: e isto é inclinação das rodas celestiais” (38:45). Um sinal da convivência, comum à época, entre teologia e astrologia.

Gustavo Barroso (2:1:27) listou didaticamente essas ilhas misteriosas consideradas principais.

1 – Antilia – cuja denominação antecipa as Antilhas que Colombo encontrou antes de atingir a costa americana.

2- Stocafixa – corruptela de stock-fish, o bacalhau. Corresponde à Terra dos Bacalhaus ou Terra Nova, conhecida antes da América pela viagem dos Corte Real.

3 – Royllo – paralela à Antilia, medindo doze léguas de comprimento e dez de largura.

4 – Man Satanaxio ou Mano Satanaxio – que significa mão ou mãe de satanás. Reza a lenda que a mãe ou mão de satanás fazia naufragar misteriosamente as naus que se aproximassem de suas costas rochosas. Haveria alguma relação com a atividade vulcânica dos Açores?

5 – Salomão – Onde estaria, milagrosamente conservado o seu corpo.

6- Mariéniga

7 – Drogeo

8 – Não encontradas – seriam ilhas errantes, invisíveis do período clássico, entre elas estaria a de São Brandão.

9 – São Brandão

10 – Oro – seria a mesma ilha dos Lobos que proveio de ilha D’Lovo, troca do V pelo B.

11 – Cabreira – por ter muitas cabras. Uma das Canárias que Ptolomeu denomina Capraria.

12 – Ventura – repisava a lenda das ilhas Afortunadas.

13 – Górgadas – onde Teseu cortou a cabeça de Medusa.

14 – Eternas – representam o mito da felicidade no Paraíso que inspirou Ponce de Leon, maravilhado com o que descobrira ao procurar a fonte da juventude.

15 – Sanzorzo – São Jorge do grupo dos Açores.

16 – Corvo Marinho – é a ilha do Corvo.

17 – Yma – pouco referida. Aparece nas lendas das viagens de São Macuto, ou Malô. Em algumas das versões da “peregrinatio” aparece como um dos companheiros de São Brandão.

18 – Do Homem e da Mulher – provavelmente por serem próximas uma da outra.

19 – Afortunadas – assim chamadas graças a sua fertilidade, clima ameno e estável, ventos suaves e úmidos, pureza do ar, onde era possível alimentar-se, sem plantar nem cultivar. Não é de estranhar que os antigos tenham crido que aí estavam os Campos Elíseos, repouso das almas merecidas, no extremo do mundo.

20 – Sete Cidades – por ter abrigado sete bispos lusitanos fugidos dos mouros quando estes ocuparam a península ibérica. Muito procurada e uma das “nunca encontradas”. Confundida com a Antília.

21 – Essores – são os Açores, descobertos em 1432 por Gonçalo Velho Cabral.

22 – Montorio – uma adulteração toponímica que remonta à “moltonis”, “moutons”, ilha dos Carneiros.

23 – Ilha dos Pombos – também dita dos Pássaros. Lembra a ilha do Pico por sua abundância de pombos selvagens.

24 – Verde – eco de uma terra feliz no ocidente. A verde Erin dos irlandeses, Groenlândia. Há uma ilha Verde na costa do labrador.

25 – Tibias e Tausens – estão no mapa de Juan de La Cosa, de 1500.

26 – Maida – sobre ela só há suposições . Uma delas é que derive de Man Santanaxio.

27 – Cerne – situada próxima da costa da Líbia vem da antiguidade e acompanha a ilha de São Brandão indo parar com ela no mar das índias.

28 – Do Brasil – sobre esta e a de São Brandão iremos lançar um olhar mais detido, ainda que breve.

Quanto a possível ocorrência delas, há três aspectos a considerar (20-33):

1 – A descoberta de algumas, na segunda metade do século XV, com a exploração da costa ocidental africana depois de ultrapassado o Bojador.

2 – A concessão de cartas régias a navegadores doando terras a serem encontradas, o que incentivava a navegação.

3 – A persistência de mitos pelos séculos seguintes que, nunca achados, provocaram a organização de expedições para buscá-los.

A propósito dessas ilhas reinava uma enorme confusão que em muito dificulta sua identificação. Sua grafia é variável, a localização muda conforme o mapa e denominações diferentes se referem à mesma ilha. O equívoco seria, em grande parte, desfeito no século XV em decorrência das navegações portuguesas a partir da descoberta da Madeira (1420) e Açores (1432). O mapa de Cresquesj, á produto da moderna cartografia, contribuiu para extirpar absurdezas e fantasias lendárias (11:296).


6.1 – Da ilha de São Brandão

O primeiro registro cartográfico desta ilha vem no mapa de Ebstorf (1270) com a legenda: “insula perdita quam invenit sanctus brendanus a (d) qua(m) cum navigasset a nullo homine postea etinuenta”, a ilha perdida esta achou São Brandão, e depois de nela ter navegado, nunca mais nenhum homem a achou.

O planisfério de Hereford identifica-a como as ilhas Afortunadas conforme anotação: “Fortunate insule sex sunt insule Brandani, os mapas de Dulcert (1339), dos irmãos Pizzigani (1362-1367), de Soleri (1380-1385) e Beccario (1426) colocam-na sucessivamente na posição da Madeira (daí provavelmente o nome de Porto Santo), como Afortunadas (junto às Canárias, em Pizzagani) e Açores (ilhas Capraria e Lobo). No mapa Pizzigani ao lado da ilha de São Brandão está uma imagem do abade abençoando-a. No globo de Nuremberg, primeira representação esférica da terra, executado por Martin Behaim (1492) a ilha de São Brandão surge em posição inédita no meio do Atlântico norte (B:55) a ocidente de Cabo Verde com Antilia ao norte (28:2:7).

O estudo da seqüência dos aparecimentos cartográficos da ilha revela sua transferência para mares menos freqüentes como a justificar seu nunca achamento (20-54); é incrível que tenha sido preservada nos mapas do século XIII à primeira metade do século XIX quando já não havia mais terras a descobrir (28:1:2).

A ilha de São Brandão, ou perdida, foi descrita por Leonardo Torriani em um texto intitulado a ilha Antilia ou de São Brandão que não se encontra (44:199). Inusitado que no mapa da ilha que acompanha o texto distinguem-se claramente as torres que identificam a ilha das Setes Cidades. O que pode levar a crer se tratarem, Antilia, São Brandão e Sete Cidades da mesma ilha. Segundo ele, Ptolomeu teria mencionado esta ilha porque “aprositus”, que apresentava como uma das Afortunadas significa lugar onde não se pode chegar, ou lugar que não aparece. A dificuldade de acesso à ilha se deveria às fortes correntes à sua volta e os poucos que a visitaram nunca mais a viram.

A lenda de São Brandão que chega a Portugal no século XVI narra o curioso achado de uma terra chamada de ilha Brasil de Brandão, que traduz uma origem céltica (2:74). As duas, Brandão e Brasil, seriam uma só.

6.2– Da ilha Brasil

A cartografia registra o nome Brasil muito antes da descoberta pelos portugueses da vastíssima extensão de terra sul-americana. Desde a carta portulana de Medici (1351) aflora no oceano uma ilha em forma de disco, ou com uma chanfradura que sugere um rio, por nome Brazil, Berzil ou Brasil (K1:99).

Adelino José da Silva D’Azevedo em seu livro “Este nome...Brasil” organizou uma tábua de ocorrências cartográficas onde há pelo menos setenta registros da ilha em diferentes mapas de autoria e datas diversas (2:399). As localizações variam e até há deles que registram mais de uma ilha com o nome de Brasil. O mapa de Pareto traz duas, uma ao sul das ilhas britânicas outra em frente ao estreito de Gibraltar. Já o portulano Pizzigani identifica três ilhas, uma a oeste, outra a nordeste dos Açores e a terceira a sudoeste da Irlanda. Ao longo dos séculos, a ilha Brasil deslocou-se cartograficamente e percorreu um longo trajeto etimológico. Desde cinabrio até o Brasil de nossos dias o topônimo esteve sempre vinculado, quanto à semântica, à cor vermelha. Vermelho das tinturas, de origem mineral ou vegetal. Os topônimos Hy Brasil e O’Brasil remetem à raiz celta Bressail que se refere à cor sanguínea. Seria uma alusão à cor de uma lendária gente vermelha perdida no Atlântico, onde fenícios e gregos procuravam estanho e o “vermelhão” (óxido de estanho). Lembro, em apoio à essa vertente dedutiva, que o prefixo O’representa descendência, netos.

Outra hipótese admite que Brasil derive do celta “bress” depois “bless”, do inglês, significando abençoar.

O fato é que o mito da ilha de São Brandão tem a ver com a ilha Brasil (351:7). Por sua vez anotada no mapa de fra Mauro (1549) como Berzil, acostada à Irlanda, com o apontamento “eusta isola de hibernia son dite afortunate” (2:264). Assim, ao falarmos das ilhas de São Brandão, Brasil e Afortunadas estaríamos nos reportando as Canárias de hoje.

Surpreendente que haja registros da ilha Brazil nos séculos XVII e XVIII só sendo eliminada das cartas do almirantado inglês, onde permanecia como “Brazil Rock”, em 1875 (36:28).

Uma visita rápida sobre a cartografia medieval nos ajudará a entender a razão da instabilidade topográfica e toponímica dessas ilhas míticas.


6.3 – Dos mapas


A idade média produziu entre os anos de 1200 a 1500 cerca de 1100 mapas mundi (17:65) executados sob o controle dos monges. Daí o componente teológico que os caracterizou. Não tinham compromisso com o concreto, a noção de distância ou escala, nem buscar orientar o deslocamento no espaço. A geografia visava mais o homem que o meio físico (17:110). Reinava uma espécie de geografia da expectativa. Esses mapas eram uma simbiose de naturalismo e alegorias nos quais não faltavam rios, ilhas reais e inexistentes, elementos da flora e da fauna, passagens históricas, e representações cristãs onde assoma a figura de Cristo, o Paraíso, cenas bíblicas. De grande dimensão, os mapas de Ebstorf (1225) e Hereford (1229) sobre os quais iremos discorrer buscavam demonstrar o mundo em uma única página. Ebstorf, o maior de todos, media 14m² (16:45). Se “um mapa é chamado imagem, do mesmo modo, um mapa-mundi é a imagem do mundo”, é a notação de Ebstorf (16:10). Expostos em paredes constituíam um meio de comunicação ao alcance das classes populares que urgia converter. Funcionaram como intermediários culturais (17:101,102) lembrando que eram produtos clericais, eruditos, que ao absorverem componentes folclóricos tornaram as mensagens que transmitiam compreensíveis aos incultos. Na sua ambigüidade expressam a integração entre as duas culturas, a convergência entre o erudito e o popular, o mosteiro e a rua. Equilibrando texto e imagem, o conteúdo dominante, atendiam à exigência visual que predominou na Idade Média. Já se disse que as imagens eram a bíblia dos iletrados.

Para uma melhor compreensão do ambiente cultural medieval é indispensável uma análise conjunta dos mapas e das narrativas que mutuamente se explicam baseados que são em um mesmo substrato de grande religiosidade (17:135,136).

Segundo Andrews, citado por Paulo Roberto Soares de Deus (17:65), os mapa-mundi medievais estariam distribuídos em três famílias: ecumênica, hemisférica e intermediária as quais podem ser desdobradas em outras categorias segundo o inventário de Destombes (17:65). Os primeiros representam o mundo conhecido, habitado, o ecúmeno. A segunda família compreende os que pretendem representar os dois hemisférios do globo.

Esses mapas são de forma variada (circular, oval, etc), tamanhos diversos e níveis de detalhamento muito diferentes. Daí a subdivisão dos ecumênicos em T-O e simples.

Os chamados T-O são os mais esquemáticos. Neles o mundo está dividido em três continentes: Ásia, Europa, África, sendo a Ásia o mais importante deles. A divisão do mundo em três continentes remonta à antiguidade, mas a propagação do modelo deve-se a Isidoro de Sevilha. O nome decorre do formato que lembra a letra T inserida em um círculo O, abreviatura de “Orbis Terrarum”, globo ou círculo da terra (16:66; 17:83). Aos três continentes correspondem os filhos de Noé, Sem, Jafete e Cham enquanto os travessões representam mares e rios. Derivados dos T-O há mapas complexos com desenhos, topônimos e figuras de toda espécie. Desses os que nos interessam no momento são os de Ebstorf e Hereford. Armando Cortesão (11:170) cita o caso único de um T-O dividido em quatro partes sendo que nada há escrito no quarto superior direito. Seria a quarta parte do mundo, representada por uma ilha (Insola ori sunt III partes mundi) como está em um códice do Vaticano no século VIII (11:170).




Mapa T.O.


A cartografia medieval não era técnica, mas uma manifestação erudita, imprestável para instruir deslocamentos. Para viagens marítimas havia os portulanos, para as terrestres os itinerários dos caminhos. O mar para aqueles cartógrafos tinha pouco interesse, servia mais como moldura para o ecúmeno (17:128).


6.4 – Do mapa de Albi

Simples e esquemático o mapa de Albi, do século VIII, é a carta medieval mais antiga que chegou até os nossos dias. Com forma retangular arredondada nas pontas reproduz o Mediterrâneo e mais umas poucas ilhas, sem menção ao Paraíso.


6.5 – Do mapa de Ebstorf

Elaborado no mosteiro alemão de Ebstorf (1230-1250) este mapa mural foi destruído quando de um bombardeio sobre Hannover em 1943. Restam cópias em bibliotecas alemãs e na Biblioteca Nacional de Paris (16:1,2). Ebstorf, assim como Hereford, obedece a um conceito comum: têm a função de apresentar a forma do mundo, toda a criação, as criaturas de Deus (16:77). Possuem claramente um objetivo pedagógico. São verdadeiras miscelâneas que contêm passagens bíblicas, cidades, rios, mares, animais, plantas, figuras míticas, simbolismos, seres humanos e os portentos e coisas portentosas. Denominações preferíveis a monstro são, segundo São Isidoro de Sevilha, deformações da figura humana, graves no primeiro caso, leves no segundo (15:191).

A carta de Ebstorf caracteriza-se pela figura de Cristo que espalha sua palavra confundindo-se com a representação do mundo, referência à teoria do micro-macrocosmo defendida por Gervásio de Tilbury, autor do mapa. No extremo leste está o Paraíso, numa apresentação ideográfica clássica. Ao centro está Jerusalém, em cujo interior Cristo ressurecto porta um cetro em forma de cruz, braço direito levantado e uma auréola dourada ao redor de sua cabeça.

O Paraíso em Ebstorf localiza-se na Ásia, ocupa, situação incomum, um vale, não acessível pelo mar, ao contrário do de São Brandão, que está no ocidente em uma ilha marítima. Paulo Roberto Soares de Deus (15:17; 16:96) afirma que a ilha de São Brandão surge pela primeira vez na cartografia no mapa de Hereford com a inscrição já mencionada anteriormente. Armando Cortesão (10:249) todavia assinala que essa ilha já vem em Ebstorf sob a legenda: “A ilha perdida: esta achou São Brandão, e depois de nela ter navegado, nunca mais qualquer homem a achou.”




Mapa de Ebstorf



6.6 – Do mapa de Hereford

Este mapa é o mais conhecido dos monumentos cartográficos mundiais e o maior que sobreviveu à Idade Média (11:249). É um mapa mural, móvel, confeccionado por Ricardo Haldigham sobre a pele de um novilho medindo 1,59m de altura por 1,40m de largura. Atualmente está exposto na Catedral de Hereford onde fica também a biblioteca acorrentada (Chained Library) (15:5). De aparência simples é na verdade extremamente complexo e contraditório. Composto de textos, contam-se 1100 inscrições, e uma iconografia rica e diversificada, constituiu uma síntese, uma “summa” da percepção da vida medieval. Ambos, Ebstorf e Hereford, têm a mesma raiz; seus autores beberam nas mesmas fontes, a Bíblia, São Jerônimo, Paulo Orósio, Isidoro de Sevilha e histórias populares. Em relação às ultimas, embora aproveitadas na confecção dos mares, eram hierarquicamente inferiores aos conhecimentos derivados da ortodoxia clerical. Exemplo disso é o Paraíso insular, atribuído à ilha de São Brandão, fruto da cultura folclórica, dos mapas de Moguncia e Hereford, bem assim a Taprobana do mapa Cottoniano (séc. X) com a mesma forma e posição dos dois outros a assinalar o fim do mundo conhecido. Colocada no ocidente no mapa de Hereford, na sua parte inferior, a ilha de São Brandão convive na mesma carta com a representação clássica do Paraíso situado no alto e no oriente. Conservadores, os cartógrafos medievais incorporavam novas informações sem descartar as antigas o que acabava por dar lugar a contradições. Em cima o mapa contém a imagem de Cristo, a cena do juízo final, e abaixo a Virgem com o busto descoberto protegida por um manto. É Maria lembrando-o do leite que lhe ofereceu: “veja, amado filho, meu seio, de onde tiraste tua carne e mamaste leite”. E pedindo, “tende piedade de todos, como vós mesmos prometeste a que me serviu...”. Há esboços de rotas que sugerem destinos de peregrinação, Compostela, Roma, e o itinerário do apóstolo Paulo, longe, todavia de significarem orientação para viagens, até pela dimensão do mapa que impede sua portabilidade. O foco estava no deslocamento espiritual e não no material.


Mapa de Hereford




Biblioteca acorrentada (chained library) localizada na Catedral de Hereford.


Para exemplo tomemos o pelicano, animal de forte carga simbólica, cuja presença destacada é uma metáfora para o martírio de Cristo. O desenho, um dos maiores do mapa, mostra um ninho com três filhotes e na borda dele um pelicano adulto com o bico dentro da abertura no peito. Alusão à lenda de que tendo morto os filhotes, após três dias abre o peito em auto-sacrifício e consegue ressuscitá-los (15:168).

Um rosto humano, junto a uma cidade, indicada como Ur sugere tratar-se de Abraão, conclusão que cabe ao espectador tirar.

Rico em metáforas o mapa é um mosaico onde coabitam o divino e o humano, o fantástico, o natural e o transcendental. Nele a abundância de símbolos e signos constitui um mistério a desvendar para o que não há uma chave única, a interpretação é arbitrária, variável, segundo cada observador, que decodifica a mensagem ao avaliar em conjunto imagem e texto.

Tanto em Ebstorf, quando em Hereford, Jerusalém ocupa o centro da carta. Na primeira como um quadrado contendo desenho da ressurreição de Cristo; na segunda como um círculo, acima do qual está a imagem do Cristo crucificado ao lado do qual se lê “mons calvarie” (16:90).

Por fim, registre-se a presença de três objetos externos ao mapa: acima, Cristo julgando os homens no juízo final; abaixo, à esquerda, Julio César recomendando a três sábios que sigam por todo mundo e elaborem um relatório a ser entregue ao senado, e à direita, um homem sobre cavalo, seguido por um pajem e um cachorro (galgo) com quem vai à caça. Pouco acima da cabeça do pajem lê-se “passe avant” que em anglo-normando pode ser traduzido como “passe adiante” (16:95,96). As duas cenas inferiores estariam relacionadas ao autor. A continuação da tarefa em nome da Igreja, sucessora de Roma. A imagem da caça, sugestão de um intervalo de lazer em meio ao trabalho.

Detalhe do mapa de Hereford. A seta indica a ilha de São Brandão


6.7 – Da nova astronomia


A nova astronomia de Copérnico, Galileu e Kepler substituiu progressivamente o céu pelo além (15:479) e facilitou as grandes navegações que determinaram um ciclo de descobertas. As ilhas achadas serviam de apoio às viagens de longo curso ao tempo em que eliminavam a existência de suas congêneres míticas no concreto, se não no plano espiritual. Estabelecia-se o predomínio da geografia positiva sobre a geografia mítica. A conseqüência dessa frustração foi empurrar cada vez mais o Paraíso para o ocidente adiando a esperança de um dia encontrá-lo. Se a técnica não confirmou a crença no Paraíso Terrestre acendeu a esperança de que por meio dela viesse a ser possível um dia atingi-lo. Não é por acaso que a cartografia repercute este sentimento localizando o Paraíso Terrestre em pontos inexistentes. (20:60)

O clímax da ocidentalização do Paraíso terá ocorrido com a chegada de Colombo à América. Disso dá conta carta que enviou aos reis católicos em 1498 por ocasião de sua terceira viagem (21:43) cujo trecho transcrevo a seguir: “Não conheço e nem jamais conhecerei nenhum escritor latino ou grego que defina de maneira segura a posição do paraíso terrestre (...). não admito que tenha uma forma de uma montanha, como foi escrito, mas considero que está no cume de um lugar qualquer que tenha a figura da extremidade superior de uma pêra e que, pouco a pouco, avançado nessa direção vindo de uma grande distância, se vá gradualmente ascendendo-a. Creio que, como o disse, ninguém possa chegar ao seu cume, e que esta água possa vir deste lugar, ainda que seja longe e venha a desembocar ali donde eu venho formando-se este lago (refere-se a foz do Orenoco). Estes são os grandes indícios do paraíso terrestre, porque é o lugar e conforme ao parecer dos santos e sagrados teólogos e ainda porque os traços estão em muito de acordo já que jamais li ou ouvi que tanta quantidade de água doce se encontrasse tão dentro e tão misturado com a salgada. Nisto muito ajuda o clima ameníssimo. No entanto se esta água não vem do paraíso, então é maior a maravilha, porque não creio que se encontre no mundo um rio tão grande e tão profundo.”

Se os descobrimentos marítimos destruíram a noção potencial de Paraíso terrestre ainda houve tempo para os europeus pensarem inicialmente tê-lo encontrado no novo mundo, na América de Colombo e no Brasil de Cabral.


7 – O que sobrou do paraíso?


Com este título Jean Delumeau escreveu um belo livro que investiga a migração do Paraíso material, feito de imagens, para o Paraíso imaterial, incorpóreo, etéreo, e os efeitos disso sobre a fé cristã. Uma mudança radical, a transferência de um Paraíso externo para o interior do homem. O triunfo da palavra sobre a imagem, do virtual sobre o concreto, do espiritual sobre o material.


A invisibilidade do Paraíso Terrestre tão perseguido pelo homem medieval acabou por permitir fosse transposta a barreira que o separava, na visão mítica dos visitante do Paraíso Celeste, espaço do divino, morada das almas. O Paraíso deixara de ser um lugar para se transformar em uma promessa do futuro. Enquanto foi visto como um limite do mundo assegurou a conexão entre o céu e a terra, os laços, entre os vivos e os mortos; estes rememorados na vida dos santos e mártires da igreja, nas missas e festas religiosas, na esperança de reencontros na eternidade.

Quando o homem desobedeceu ao Senhor e comeu do fruto da árvore da ciência trocou a imortalidade, que durou poucas horas, (22:132), pelo conhecimento. A expulsão de Adão e Eva, com a conseqüente perda da perfeição, dava início à história e ao primeiro mito. Começava a trajetória pontilhada de tribulações humanas e a primeira utopia do homem foi a reconquista do Paraíso. Deus pai fechou-lhe as portas; Deus filho as reabriu pelo sacrifício na cruz, aos que o merecessem.

Mircea Eliade (17:72) considera que a religião cristã, ao contrário das orientais, espacializou o sagrado ao colocá-lo no exterior do homem. Para essas, o ser humano possui o divino em si cabendo a ele promover seu desenvolvimento espiritual. O que explica o hábito do recolhimento e o emprego freqüente da meditação entre seus seguidores. Para o cristianismo, o espiritual ganha o espaço do mundo. “Mas nenhum lugar era tão sagrado quanto o corpo humano”, o micro-cosmo dos gregos, feito à imagem e semelhança de Deus (17:72). A idéia de um Paraíso abstrato, portanto incógnito, vem reforçar a linha de teólogos e místicos que o concebiam no interior de cada homem.

A viagem a ser feita para alcançar o Paraíso não será longa em percurso, pois afinal ele está bem próximo de cada um. Nem por isso será fácil a travessia.

A nostalgia do Éden, a procura por um lugar que não existe, a invisibilidade do Paraíso foram perdas severas para a humanidade. Se a ciência demonstrou que o céu e a terra pertencem ao mesmo universo, sujeito às mesmas leis (15:507), o Paraíso passou a ser visto como uma utopia, um não lugar, na acepção etimológica da palavra, até mesmo uma ucronia, um não tempo. Tal como ouviu Fernão Capelo Gaivota do velho a quem indagava ansioso se havia chegado ao Paraíso: “O Paraíso não é um lugar, nem um tempo. O Paraíso é ser perfeito” (3:90).

A perfeição é um ideal cristão a buscar. Se é uma utopia e a ela não se vai, sem ela não se vive. O caminho a seguir é um não caminho. Uma errância espiritual. Desprendida, feita de perdição e abandono. A desorientação de São Brandão, quando os monges sequer enxergavam uns aos outros em meio à forte cerração, foi que os levou ao Paraíso. A lição consta do evangelho nos magistérios de Lucas e João. Está em Lucas (Lc 9:23): “Pois qualquer que quiser salvar sua vida perdê-la-á”, e em João (Jo 12:25): “Quem ama sua vida perdê-la-á.”

Sejamos pois esses errantes espirituais, almas vagabundas, como os “marivagi” (errantes do mar) na expressão de Benedeit a propósito de São Brandão e companheiros de aventura, perdendo-se para acharem-se, vivendo para morrer, morrendo para viver. Divina errância, ser e devir, repouso e movimento, “viagem na qual nasce o próprio viajante” (9:31). Pelo prazer de “embarcar, embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos portos de chegada” (9:31) como preconiza mestre Agostinho da Silva.

Afinal, o que foi mesmo que restou do Paraíso, qual o espólio dessa maravilha que encantou a humanidade durante séculos? Concluo com Jean Delumeau, autor da pergunta, no fecho do seu livro: “À pergunta, a fé cristã continua a responder / - Graças à ressurreição do salvador, um dia todos nós nos daremos às mãos e nossos olhos verão a felicidade!”

Só outro mistério explica um mistério!


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UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Este texto constitui uma tentativa de organizar informações colhidas em fontes secundárias respeitáveis sobre essa aventura mística medieval de São Brandão, como nasceu e prosperou ao longo de séculos. Não tem, portanto, a pretensão de ser original nem de esgotar o tema. Fica como um estímulo aos que atraídos pelo assunto, queiram nele aprofundar-se.

Os números entre parênteses indicam, o primeiro, a obra que consta da bibliografia, e o segundo, a passagem dela citada.


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A viagem de São Brandão - O Paraíso na Terra - Parte I

Lúcio Alcântara

Médico, presidente do Instituto do
 Câncer do Ceará, membro da
 Academia Cearense de Letras.


E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)


(Álvaro de Campos / Heterônimo de Fernando Pessoa)


1 – Das formas de viajar


“Viagem e literatura” é o assunto selecionado para o ciclo de conferências organizado anualmente pela Academia Cearense de Letras. Viagem no sentido amplo da palavra. Muito mais que o deslocamento físico em um espaço externo. Viajar é transitar no real e no imaginário. Conhecer e conhecer-se. A possibilidade mágica de ir a muitas partes sem arredar pé de seu lugar. Tudo isso porque o homem é o único animal capaz de pensar e sonhar e os livros são esses instrumentos maravilhosos que nos transportam a bordo da imaginação alada. O curso livre da fantasia implica na errância do sujeito, ousado ao partir, desapercebido do ponto de chegada.

Relatos de viagens, fictícias ou autênticas, fantásticas, satíricas, ou descritivas de terras e gentes, acabaram por constituir uma categoria literária, a chamada literatura de viagem.

De viagens empreendidas pelo homem no seu interior trataram, entre outros, Xavier de Maistre em seu “Viagem à roda do meu quarto”, assim Descartes no “Discurso do método” e o nosso Machado de Assis no conto “Viagem à roda de mim mesmo”. Ainda caberia mencionar, no campo da exaltação transportadora onírica, a viagem enganosa das drogas, passaporte sedutor para a ruína física e moral dos usuários.

Face às várias hipóteses disponíveis para realizarmos nossa jornada comum, todas dotadas de fascínio e encanto, pincei uma das mais populares viagens medievais ao além, cuja ampla difusão refletiu na cartografia até muito depois da Idade Média. Refiro-me à “Viagem de São Brandão”, peregrinação marítima em busca do Paraíso.

Será esta nossa aventurosa expedição pelos ínvios caminhos de uma era labiríntica, farta de versões e alegorias que confundem a história e a fantasia, origem das incertezas sobre fatos, nomes e lugares distribuídos em alfarrábios e cartas geográficas. Nautas do desconhecido, aprendamos juntos, vocês e eu, afinal ainda a melhor forma de ensinar.


2 – Da vida de São Brandão

São Patrício foi o evangelizador da Irlanda no século V e Brandão, nascido em 484 e falecido em 577, um dos continuadores de sua obra. De origem nobre, abandonou as riquezas materiais para fazer-se monge e logo um abade peregrino, fundador de mosteiros nas ilhas britânicas que, graças às suas virtudes, teria reunido em torno de si cerca de três mil seguidores. (17:36). De sua dinâmica atuação para o desenvolvimento do monaquismo irlandês fala o mosteiro da cidade de Clonfert, em cuja catedral fica estátua sua, razão de ser conhecido como São Brandão de Clonfert. Seus constantes deslocamentos em terra não o tornaram tão conhecido e popular durante séculos quanto à viagem marítima que empreendeu por sete anos que lhe valeu a alcunha de “Brandão, o navegador”. Por suas características fantásticas, impregnadas de misticismo, a narrativa da “Navigatio Sancti Brendani”, considerada por Lemarchand (6:6) uma espécie de “Odisséia, uma Eneida cristianizada”, impõe-se perante a história face à “Vita Brendani” texto hagiográfico pouco valorizado. Não é exagerado considerá-lo um precursor de Dante.


3 – Da Viagem peregrina

Da viagem de São Brandão contam-se cerca de oitenta versões tendo chegado até nós algo como cento e vinte manuscritos, o que informa sobre a larga circulação do texto. Divergências e contradições entre eles explicam-se pelo enorme tempo decorrido entre a difusão oral e a transposição para a linguagem escrita. Quinhentos anos separam a viagem ocorrida no século V até sua transcrição para o latim no século X, por um monge irlandês fugitivo de perseguições religiosas que vivia em um mosteiro renano.

Uma segunda alteração significativa, além da conversão da tradição oral popular de fundo celta para a forma erudita escrita, surgiu no século XII por volta de 1120, variante escrita em anglo-normando (francês antigo) pelo arcebispo Benedeit, a pedido da rainha Matilde e a ela dedicada. Matilde, mulher de Henrique I, filho de Guilherme, o conquistador, cercada de poetas, estimulava a leitura de textos na corte numa espécie de vassalagem literária (6:6) então em voga. Era tempo de transição, marcada pelo emprego das línguas romances no lugar do latim e da leitura para um público alvo em substituição às narrativas recitadas para anônimos (6:6).

A descrição da viagem e seus preparativos, refundida por Benedeit, suprime passagens de caráter acentuadamente monástico em detrimento de sua natureza religiosa. O que a aproxima da literatura cavalheiresca (17-34). Sobre ela, iremos demorar o nosso olhar ávido por desvendar este mistério feito de realidade e ficção.

O móvel único da viagem de Brandão foi o seu desejo de conhecer, antes de sua morte, o Paraíso. Orou a Deus pedindo para visitar o reduto dos bons “onde se assentou Adão” (6:14) e também o inferno, lugar destinado aos maus.

Obstinado em sua vontade de encontrar a primeira casa do homem, procura o ermitão Barinto, recluso em um bosque, para com ele se aconselhar. É então que ouve o relato do monge sobre seu afilhado Mernoc que em viagem marítima encontrou a ilha deliciosa, a que mais tarde o próprio também contemplou e cujas maravilhas descreveu a Brandão. A narrativa o fez decidir empreender a viagem em busca da “Terra Repromissionis Sanctorum”, ou simplesmente o Paraíso Terrestre, de onde nos afastara o pecado do casal fundador da humanidade.

Na versão holandesa (19:2), a aventura de Brandão não teria se inspirado na narrativa de Barinto, mas seria a punição de um anjo que o teria surpreendido ao atirar ao fogo um livro por descrer dos milagres da criação.

Inicia a preparação para a jornada selecionando 14 monges entre seus melhores seguidores, advertindo-os “de que tudo ignoramos na nossa empresa e quais as tormentas que nos aguardam”. Providencia a construção de um barco (curragh), típico da Irlanda, feito de couro esticado sobre uma armação de madeira, abastecido com víveres suficientes para quarenta dias. Tudo isso fez no “sítio onde a terra acaba” (6:19), um penedo agreste depois denominado salto de São Brandão, em cujo sopé havia um porto, lugar de partida da empreitada. Não sem que antes de embarcarem surgissem na praia, aos gritos, três monges que imploraram para se juntarem à comitiva. Sabedor, mercê de Deus, do que os aguardava acolheu-os e informa-os que “dois deles satã diabo há de levar (6:21) e o terceiro tentação irá sofrer.”

Abençoados por Brandão todos embarcaram, sendo ele o último a fazê-lo, compromissados em jejuarem durante quarenta dias e três vezes por semana. Feitos ao largo, foram impelidos para ocidente pelo vento que soprou do oriente.

Quando faltou o vento, por um mês, extenuados de remarem, vendo esgotarem-se os mantimentos em meio à calmaria, amedrontados ouviram do abade a palavra de fé “Aceitai aquilo que Deus nos manda/e nem um sequer sinta temor/se o vento soprar as velas nos levam/se o vento cair, pegamos nos remos” (6:23).

Avistaram, ao longe, terra de altos montes tendo gasto três dias para aportarem em meio a perigos do choque de ondas contra falésias e penhascos até ancorarem em águas serenas de um porto escavado na rocha. Eram chegados à ilha Selvagem onde se depararam com um castelo feito de mármore, pedrarias, ouro e suprimentos servidos em ricas baixelas sem que, entretanto, surgisse pessoa alguma. Recomendando moderação do que se servissem sabia Brandão do que estava por vir. Quando dormiam, satanás a um seduziu para que roubasse um valioso graal de ouro, gesto percebido pelo abade, pois “quando Deus quer algo mostrar não há precisão da luz de uma vela” (6:27). Ao apontar o ladrão, o abade anuncia sua morte, confessa-o, absolve-o e logo se ouve o diabo sair gritando “Qual a razão porque me expulsas de minha casa?” Todos viram a morte chegar e levá-lo ao paraíso. Ele era um três irmãos acrescentados por último ao grupo.

No porto, são visitados por um mensageiro que lhes leva pão e água, tranqüiliza-os quanto à viagem e o achado do que buscam, assegura-lhes que tudo será provido a tempo. É sob a proteção de Deus que navegam.

Decorrido quase um ano, desembarcam em terra povoada por rebanhos de grandes ovelhas e em cada, um velo branco. Estavam na ilha das Ovelhas. Era quinta-feira, dia da última ceia. Ordenou-lhes Brandão prepararem uma delas para a ceia pascal, decidido a aí se quedar por três dias.

Ao mensageiro de brancos cabelos e olhar juvenil que surge, inquiriu Brandão sobre o lugar obtendo resposta discreta: “Tem muito de seu e de sobejo / quem sabe pensar com o seu coração” (6:31). Disse-lhe ainda serem grandes as ovelhas por não sofrerem doença, nem ordenha e estarem imunes à morte. Orienta-o a celebrar sua festa em ilha a vista e de regresso, na noite seguinte, com a promessa de encontrá-lo em outro lugar para provê-lo do que precisasse. Assim procedendo, chegaram à ilha a que deram por nome Nua, onde oficiaram o santo serviço por toda noite até a manhã.

Temperaram a carne e assaram-na. Quando estava no ponto para comerem-na, eis que gritam pelo abade assustados sobre a terra que tremia. Resgata-os para a nave, enquanto a ilha afasta-se veloz, distinguindo-se muito ao longe o lume que atearam sobre ela. Aos irmãos cheios de pavor, explica que estiveram na verdade sobre o dorso de um enorme peixe, Jascónio, o primeiro por Deus criado. Esse e outros prodígios vindouros haveriam de lhes fortalecer a fé.

Corria no alto mar a nave, quando avistaram, alta e clara, a terra anunciada pelo mensageiro. Arribaram e subiram pelo leito de uma ribeira dando no sítio da fonte do riacho com uma árvore de mármore de folhas grandes, brancas e vermelhas. De alto a baixo pendiam ramos em frondosa copa, pouso de aves brancas nunca vistas tão belas. Era a ilha dos Pássaros ou dos Pombos. Paraíso das aves anunciou uma delas, pousada na nave. Ato contínuo comunicou a Brandão que eram anjos caídos, castigo de Deus ao mestre do bando que, nomeado para ensinar as virtudes divinas, se fizera malvado e soberbo desdenhando da sua palavra.

Por terem-no seguido foram privados de contemplar a majestade e a glória de Deus.

Há um ano no mar, mais seis, cheios de penas e males, se passariam até que atingissem o Paraíso, sendo certo que todos os anos celebrassem a Páscoa no dorso do peixe.

No declínio do dia, ouviram-se os pássaros entoarem um coro de vésperas, alegres com a primeira visita de gente humana. E com eles cantaram os monges as completas e as matinas.

Viram chegar o enviado de Deus que mais uma vez garantiu-lhes provisão e repouso até a oitava de Pentecostes, quando abalaram para navegar por oito meses, após mil provações, até a ilha de Albeu, onde estariam pelo Natal. Aí chegaram, passados quarenta dias a bordejar a costa, sem ancorarem em porto algum (6:41). Acharam logo uma fonte com duas águas, uma clara e outra turva, tendo aparecido um ancião que, de pronto, os conduziu a uma rica abadia onde monges, em suntuosas túnicas, com eles confraternizaram. À mesa farta comeram e cantaram salmos e o “miserere”.

A seguir, contou-lhes o abade serem vinte e quatro os que seguiram Santo Albeu, morto há oitenta anos que, chamado por um mensageiro vindo do céu, deixou feudos e riquezas para nessa ilha fundar o mosteiro. Hoje, prosseguiu, é Deus quem nos sustenta, tudo prevê, sem que se peça em sítio algum, e se saiba de onde vem. Da água clara bebemos, com a turva lavamo-nos. “Quando falta a luz do sol, acendem-se as candeias sem precisão de azeite ou cera. Sozinhas se apagam, sozinhas se acendem”. (6:46)

Por fim, indica que deveriam partir no oitavo dia da Epifania à hora prima. Maravilhado com o que vira, Brandão diz, “Nada me dá mais gosto que viver e estar num lugar assim”. Ao que lhe respondeu o abade: “É teu dever seguir na demanda que começaste e depois regressar ao teu país onde nasceste e hás de morrer” (6:46).

Chegado o dia marcado, abalaram, afastando-os da ilha de Albeu um “vento divino”. Por muitos dias vogaram no mar coagulado, “espesso como um paul”, que até temiam a nave atolar-se. Em ingente esforço, agravado pela sede e escassez de víveres, tangidos por “um vento rijo” aportaram na foz de um rio de águas claras quando se fartaram de peixe e abusaram de uma bebida feita de ervas do lodo das margens, desobedecendo aviso pregado pelo abade. De tanto beberem pareciam loucos. Depois, acometidos de um sono pesado ”assim jazeram por dias seguidos” (6:48). “Fujamos daqui para não cairdes no esquecimento. Mais vale a fome e guardardes a honra que esquecer a Deus e a oração”, ordenou-lhes Brandão.

Após vinte dias de navegação, voltaram à terra do ancião encanecido “onde lavaram os pés e comeram a ceia como diz e manda a Santa Escritura” (6:49).

A páscoa celebraram em paz na ilha do Peixe, onde logo viram o caldeirão guardado por Jascónio no dorso.

Então, aproaram para a ilha das aves, saudados por cânticos, quando uma delas falou-lhes que aí ficariam até a oitava de Pentecostes. A cada ano da viagem, para lá voltariam comemorada a Páscoa no dorso do peixe e o natal na ilha de Albeu.

Servidos de tudo pelo providencial mensageiro singraram para o ocidente com vento de popa. Num mar dormido, quase morto, vogaram por três quinzenas. Foi então que sentiram um frio nas veias em meio à grande tormenta; transidos de medo depararam-se com uma serpente saída do mar que os perseguia veloz com mais de mil dentes na fornalha da boca soltando bramidos de mil touros; fazendo altas ondas, acercava-se dos peregrinos. Foi quando Brandão pronunciou então palavras de fé, “Pois aquele que por Deus é guiado não deve temer besta a mugir” (6:53). Logo surgiu outra serpente que contra a primeira travou luta feroz, cabeças no alto, narinas flamantes, golpes de patas, escudos de asas tingiam de sangue a água do mar. Por fim, venceu a última serpente recolhida depois à sua morada. Foi o socorro de Deus em cujas mãos deixam tudo.

Dias depois arribaram e desembarcaram assustados por uma grande tempestade que arrastou à terra um monstro marinho que, retalhado, matou-lhes a fome por muitos dias.

“Vede irmão, aquela que era nossa inimiga nos dá ajuda pela graça de Deus”, dirigiu-se assim Brandão aos companheiros.

Baixava dos ares enorme perigo, um grifo tremendo para os levar nas patas enormes, cujo vento do sopro tombava a nave, expelindo chamas pela garganta. Foi então que apareceu um dragão que lhe deu terrível combate e o grifo abateu precipitado no mar.

Por ocasião da festa do dia de São Pedro “entoava o abade em voz alta e muito clara” (6:59) um sacro serviço, quando foi advertido do risco que corriam face a guerra de peixes enormes que a água cristalina deixava-os enxergar. Recusou-se o abade a baixar o tom cantando mais alto e mais claro a glória de Deus, que nunca os desampara, exortando-os a rogarem o perdão de suas culpas. Do mar saídos monstros enormes acercados da nave “gozaram a seu modo” o dia de festa, tornando às moradas encerrado o ofício do dia.

Vogando em frente, adiante viram brilhar grande coluna no alto mar. Assentada no fundo do mar subia a prumo até às nuvens “(6:61) toda feita de rubi e lavores de ouro, adornada de muitas bandeiras. No interior da coluna, abade e irmãos divisaram rico altar com sacrário de ágata, colunas de ouro, candeias de berilo. Aí demoraram três dias dizendo missas até que, pensando melhor, resolve Brandão partir por não achar bem querer desvendar os segredos de Deus.

De novo no mar, cheios de fadiga e esperança, de súbito avistaram uma terra escura, fumegante, de onde exalava podridão pestilenta. Sem que conseguissem singrar contra o vento em vão tentaram se desviar do indesejado destino. Instruído de tudo o abade falou e disse: “Senhores sabei que para o inferno vos levam a força / jamais como hoje tivestes precisão / que Deus vos acuda e vos dê amparo” (6:63). Não se enganara, bem perto dali era o inferno.

Ao acercarem-se descortinaram o horror das trevas de abismos e vales de onde rugia o vento soprado por foles e ecoavam estrondos tremendos acompanhando nos ares labaredas e espadas candentes.

Eis que sobre um monte, um colosso de diabo ardendo em chamas, cuspindo fogo, de olhos em brasa, sustenta um cutelo saído da forja em uma tenaz “de peso maior que dez juntas de boi” (6:65). Lançado o cutelo contra os visitantes não os atingiu, caiu no mar ficando a queimar como “urze a arder no campo queimado” (6:65).

Fugidos do sinistro lugar, levados por vento de popa, viram de longe a ilha a arder “envolta em fumo tenebroso e espesso (6:65) ouvidos ao longe dos diabos os uivos, dos condenados brados e prantos.”

A salvo do perigo permaneceram na fé sem abalo depois de conhecerem a morada dos condenados.

Pela manhã, avistaram terra. Uma alta montanha envolta em nuvens para onde os empurrava um vento forte. Para terra tão negra saltou um irmão sem que se soubesse nunca a razão. Jamais o viram, só sua voz escutavam a dizer, “Senhor, ele bradava, de vós me apartam. E sou prisioneiro dos meus pecados como sabeis”. O abade, que tudo assistia e sabia, via mil diabos a arrastá-lo e vociferar.

Quando as nuvens descobriram o monte, abriu o inferno suas goelas cheias de paus e cutelos em fogo numa atmosfera de pez e enxofre.

Navegando, viram um grande vulto que lhes pareceu abrupto rochedo, determinando o abade que para lá se dirigissem.

Ao chegarem, viram espantado um homem sentado no alto, o corpo esfolado, a pele rota caída em franjas, um trapo nos olhos, agarrado à rocha batida por ondas tão fortes que ameaçavam levá-lo.

Inerte e cansado queixava-se:

“Ai Jesus, rei majestoso,


Que a morte venha no inverno ou no verão!


Jesus tu que fazes mover os astros e mover os tronos por tua graça e tua bondade!


Jesus, tem misericórdia sê generoso


E diz-me a hora do meu consolo.


Jesus de Maria nascido,


Pelo que fiz não ouso nem posso


Implorar a tua graça e a tua mercê


E o meu julgamento foi de justiça.” (6:69)


Ao ouvir este lamento sentiu Brandão dor jamais sentida “e, ao aproximar-se, acalmou-se o mar sem vento a agitá-lo. Fitando-o indagou quem era, a razão de sua desdita, para então romper em convulso pranto. Apresentou-se o outro como Judas, “aquele que serviu e traiu Jesus / aquele que vendeu seu amo / e de nojo e desgosto se enforcou / fingi o amor para o beijar / e trouxe a discórdia e não a paz” (6:70). E prosseguiu narrando o sofrimento do arrependido desgraçado que se matou sem confissão e foi condenado dia a dia.

Todo aquele martírio, disse o desventurado ao abade, representava uma trégua diante dos padecimentos no inferno que sofria todos os dias até sábado ao cair da noite.

O alívio das penas, “descanso”, digamos assim, expressão empregada por Judas, era reservado aos domingos. Ao tempo da Páscoa e de Pentecostes. Por quinze dias chegado o Natal no rochedo alivia-se de sofrimento; nas festas em honra de Maria não sofre pena alguma.

Curioso indaga o abade, que torturas suporta, qual o lugar do seu sofrimento, que lhe permite chamar de descanso o tormento dos dias de exceção? É no feudo dos diabos, muito próximo, onde há dois infernos, um monte e um vale, separados por um mar de sal, que por sorte não arde, responde-lhe o condenado. Então descreve o que sofre nos dois na cronologia dos suplícios cruéis distribuídos pelos dias da semana. “As penas do monte são mais penosas e mais horrendas as penas do vale” (6:73) aplicadas ora num ora no outro sítio, as torturas alternam-se terríveis entre o calor e as brasas do monte e o frio gelado do vale que considera a maior das torturas que pode sofrer.

Roga a Brandão o desgraçado que, como “homem de méritos, santo e piedoso, vindo de boa fé (6:77) socorra-o que mil diabos já vêm para conduzi-lo de volta ao inferno”. Do dinheiro sobrado das esmolas que deu, comprou uns trapos a um miserável que posto na boca impede-o de engolir a água do mar tendo ainda lançado ponte sobre a ribeira que evita as pessoas de ali se afogarem.

Chegaram os demônios, e eram mais de mil, com ferramentas de atormentar, e foram direto ao infeliz quando o abade gritou a um mais afoito com um gancho na mão: “Deixa-o em paz. Até a manhã de segunda-feira” (6:78). Recuando diante da ordem dada em nome de Deus libertaram a presa com a ameaça de penas dobradas. “Não há mais tortura que a destinada no julgamento” (6:79).

Quando a madrugada surgiu apossaram-se os diabos de Judas.

Afastou-se Brandão daquelas paragens, todos confiantes na proteção divina para guiá-los. Foi quando ao contarem os companheiros deram pela falta de um deles do qual ignoravam o paradeiro a diferença dos outros dois desaparecidos. Sabedor de tudo falou o Abade: “Sempre Deus faz o que lhe apraz. Não duvideis e não temeis, mantende firme o vosso rumo. Chegou o dia do julgamento do nosso irmão. Chegou a hora do seu repouso ou seu tormento” (6:79).

Agora foi uma alta montanha que divisaram sobre o mar, uma costa alcantilada, onde encontraram o ermitão Paulo vestido com seu cabelo mais branco e luminoso que a neve. Sem padecer doença, ali vive há noventa anos no aguardo do juízo, alimentado durante trinta anos por uma lontra, que lhe trazia peixes e um dia partiu. Após o que, de água vive há sessenta anos oriunda de uma fonte que de tudo o sacia “e não sente falta de manjar algum (6:83). Cinqüenta anos vividos no mundo dão-lhe cento e quarenta de idade.

Por fim, anunciou que Brandão irá ao paraíso depois de sete anos de demanda. Antes, voltará onde esteve e na companhia do “bom hospedeiro”, a quem seguirá como guia, chegará ao Paraíso, morada dos santos.

Despedindo-se do ermitão cuidaram de navegar de regresso até acharem porto em meio à névoa espessa, na quinta-feira, dia da ceia. Repousados, remaram ao peixe servidor e amigo sobre o qual pela vez última a Páscoa comemoraram. Tangidos por vento de boa feição tornaram à Ilha das Aves, onde se atardaram dois meses inteiros. Provisionados do quanto poderiam precisar fizeram-se ao largo acompanhados pelo leal hospedeiro.

Quarenta dias singraram sem nada avistar a não ser o mar e o céu nas alturas. Deram então com denso nevoeiro feito de nuvens negras que já não permitiam o regresso, engolidos por neblina cerrada e escura.

“Não demoreis. E fazei a vela tomar o vento que é de feição” (6:86). Ao aproximarem-se, abriu-se um espaço da largura de uma rua por onde seguiram até que ao quarto dia emergiram da névoa e, de longe, descortinaram o paraíso.

Viram primeiro alta muralha sem ameias, passadiço, nem barraca ou atalaia, cravejada de gemas e gotas de ouro ali engastadas. “Por cima do mármore daquele monte está outra montanha de ouro fino e mais acima os muros que encerram as flores do Paraíso” (6:87).

A entrada acharam-na bem guardada por uns dragões cuspindo “fogo de chamas ardentes. Da porta pendia espada afiada com a lâmina apontada para o lado de baixo” (6:87;88). De súbito surge um donzel que os chama pelos nomes apazigua os dragões e, humilde, pede a um anjo que cesse o rodopiar da espada.

Aberta as portas, seguiram o donzel que lhes foi mostrando os encantos do Paraíso. Jardins, árvores frondosas, flores e frutos que se abrem em qualquer estação. Veados sem conta, saborosos peixes nadam nos rios; nos campos correm regatos de leite; o mel escorre de arbustos e juncos; ergue-se um monte abundante em gemas e ouro onde o esplendor do sol é eterno “Quem ali mora penas não sofre (6:90). Nem calor, nem frio, sem nada perder de tudo achará” (6:90). Descreve o donzel prazer e delícias que o morador haverá de gozar.

No alto de um monte, de ciprestes coberto, um coro de anjos canta a alegria pela sua chegada numa melodia “tão doce e tão branda que fazia sofrer” (6:91).

“Mais adiante não vos posso levar, daqui regressemos”, diz o donzel. Brandão, algo já viste, tal como a Deus suplicaste. Da sua glória muito há a ver, cem mil vezes e ainda outro tanto. Quando voltares em breve, virás com o teu espírito. Agora vai, quando voltares é para esperar a hora exata do teu juízo. Leva contigo algumas das pedras mais preciosas são uma prenda e um sinal para teu conforto” (6:91).

“Despediu-se de Deus e de todos os santos o abade Brandão e guiados pelo donzel chegaram à nave na qual embarcaram. Içada a vela, súbito desapareceu o leal hospedeiro. O Paraíso era seu feudo” (6:92).

Alegres zarparam para a Irlanda, chegarem três meses depois. Pronto correu por todo o país a nova de que o abade Brandão voltara do Paraíso. A todos narrou a história em minúcias, apertos e gozos, de como foi pedido e por Deus atendido. Dos seus irmãos companheiros muitos a santos chegaram por suas virtudes.

Quanto a ele chegada a hora de sua morte “regressou ao lugar que Deus destinara. Brandão abalou para o reino de Deus e graças a ele para ali o seguem mil e mais de mil (6:93).


4 – Da simbologia e contexto histórico da viagem

A proeza de Brandão, uma viagem ao além como outras tantas em que foi pródiga a Idade Média, insere-se no período entre os séculos VIII e X originadas de antigas lendas celtas adaptadas nos mosteiros à feição cristã (18:7). Serviam assim ao propósito de difundir o cristianismo incipiente – não esqueçamos que Brandão foi um dos primeiros cristãos da Irlanda – como instrumento de conversão da população. Assim é que a “Navigatio Sancti Brendani” pode ter sua origem na lenda de Bran, uma antiga “imram” (história maritima) irlandesa. Nela o herói viaja em busca da terra venturosa por ilhas remotas até chegar ao país das mulheres onde, sem coragem de descer à terra, é laçado e arrastado pela chefe delas (30:40). O relato de Brandão é considerado um paradigma entre as descrições de viagens ao além, comuns na Idade Média. Essas descrições obedeciam a certos procedimentos narrativos identificados por Paulo Lopes que garantem a essas manifestações escritas “uma forma literária autônoma no panorama da prosa medieva” (32:7,8). Segundo ele, em resumo, seriam os seguintes os elementos estruturantes dessas histórias: respeito por um itinerário; ordem cronológica; ordem espacial (o papel central das cidades); a presença dos “mirabilia”; ausência de uma clara separação entre geografia, história, lenda e mito; dar a conhecer o mundo; ausência de ações paralelas; narração linear e contínua. Recurso a primeira pessoa, (predomínio do eu); privilégio aos dados externos; apresentação de histórias intercaladas; articulação do discurso documental com o literário, prevalecendo, todavia, sempre o primeiro.

A ilha visitada por Bran seria a Avalon do rei Arthur, que surge como a ilha Afortunada, análoga ao Paraíso, onde seus habitantes vivem em paz, sem medo da morte e das mazelas do mundo. Descrito no texto anônimo “Viagem de Bran” como um abrigo encantador que fica além do horizonte sem acesso à navegadores e aventureiros (42:44; 33:44).

A narrativa de São Brandão está dividida em três partes: preparativos; percurso pelas ilhas com o registro das ocorrências e a chegada a “Terra Repromissionis”, por fim retorno à Irlanda e morte do santo.

O maior espaço concedido à viagem em si indica sua natureza peregrina, iniciática, de preparação espiritual para a chegada ao Paraíso. Movia o abade o desejo de conhecer antes de sua morte “qual morada corresponderá aos bons e qual lugar ocuparão os maus”. Se havia um Paraíso na terra, perdido para o homem pelo pecado, era preciso encontrá-lo, e recuperá-lo, para os que o merecessem. A materialização do Éden era fundamental para convencer os pagãos, daí sua incessante busca na Idade Média. Não obstante sua raiz pagã, o itinerário do abade tem iniludível conotação cristã que o caracteriza como uma “peregrinatio pro amore Dei.” Por essa época, a peregrinação era uma prática individual, só a partir das Cruzadas se tornariam coletivas, em contraste com a reclusão das abadias (30:33). O texto traz 41 referências diretas à Bíblia sendo 33 ao velho testamento (1:12). São mencionadas celebrações de ofícios religiosos e comemorações das festas da Páscoa e de Pentecostes. Valorizada a ascese, a prática do jejum, o eremitismo como forma de crescimento espiritual, a fé inabalável que os guia e alimenta. Refeições frugais, feitas de pão e peixe, ou de água exclusivamente, providas por um misterioso mensageiro configuram um quadro de “auto-contentamento com uma vida simples divinamente assistida” (9:12).

O embate entre os monstros admitido por Deus é a luta entre o bem e o mal, a vitória da vida sobre a morte. A viagem do santo era física e espiritual, marcada pelo despojamento e a entrega nas mãos de Deus. Impera o silêncio, os diálogos são poucos e curtos, a não ser o que se dá entre ele e Judas, o clima é de meditação, isolados no mar, a versão líquida do deserto, sem referência alguma a pericia ou habilidades náuticas. Perdidos na imensidão do oceano, submetidos a provações, fortalecidos na fé, estavam seguros do êxito da empresa. O cristianismo é a religião da salvação, mas para salvar-se é preciso perder-se, abandonar-se aos desígnios divinos. Seguir a lição que purifica os sentidos e o espírito ensinada por São João da Cruz: “Para vir a gostar tudo, / Não queiras ter gosto em nada. / Para vir a saber tudo, / Não queiras algo em nada / para vir a possuir tudo / não queiras possuir algo em nada” (9:26).

A alegoria da alimentação à base de pão e peixe lembra a comunhão eucarística. “Ictus”, peixe em grego, recorda um símbolo tradicional de Cristo e o acróstico, segundo Santo Agostinho, significa “Jesus Cristo Filho de Deus, Salvador” (9:8).

O monstro que atemoriza, morto, alimenta-os, e a docilidade da grande baleia que os guia até à ilha dos Pássaros são manifestações do poder divino.

Em diálogo com Judas, atado ao rochedo, exposto às intempéries do mar, sucumbido pela miséria moral, compadecido, chora o abade determinando aos demônios a prorrogação do descanso do traidor miserável. Agia em nome de Cristo. Consta que a vedação ao seu nome em sermões dos monges de Cister resultou dessa intercessão pelo alívio das penas de Judas (31:2).

As menções ao vento lembram o sopro divino do livro sagrado que determina, impele e retarda a marcha do barco. É o vento que o orienta em direção ao ocidente quando as representações do Paraíso colocavam-no no oriente. De novo o vento força o barco, a despeito do esforço em contrário dos monges remadores rumo a ilha dos Ferreiros, obrigados a conhecerem o inferno e seus demônios. Alusão ao espírito de Deus que insuflou pelas narinas vida no pó feito homem (Gen 2;5) e à palavra do evangelista João (Jo 3;5,18): “O vento sopra onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai, assim é todo aquele que nasceu do espírito.”

A força desse relato resistiu aos séculos, repassado pela comunicação oral e, mais tarde, transmitido por escrito em latim e, posteriormente, em vernáculo. Como todas as narrações de viagens na Idade Média, um misto de fantasia e realidade ou realidades fantasiadas. Forte impressão causada pelo texto levou a tentativas de racionalização. Humboldt (46:29:37:5), decifrando passagens descritas pelo santo, especulou que ele houvesse navegado pelos mares do norte da Irlanda. O geógrafo identificou a ilha dos Carneiros como sendo as Faröe; a lha infernal como um vulcão na Islândia; o pálio de cristal, um iceberg; os demônios, que mataram dois companheiros de Brandão, ursos brancos; as nozes contendo leite açucarado, cocos, o que sugere que Brandão possa ter chegado até a latitude das Canárias e mesmo ultrapassado o Bojador (12:100).

Um aventureiro irlandês, Tim Severin, na década de 70, fez mais. Reproduziu um curragh, barco usado pelo abade e seus irmãos para repetir a mítica viagem. Tentava provar que os celtas chegaram a América, Terra Nova, muito antes de Colombo. Há indicações de que tal navegação seria tecnicamente possível no século V (29:37:2).

Indago agora a que atribuir o sucesso dessa história lembrada durante séculos? Tentemos uma explicação colhida em boas e variadas fontes.

A cultura da Idade Média estava dividida em duas, clerical e folclórica, como prefere Le Goff, ou erudita e popular. Uma, escrita, em latim, atinente aos mosteiros, própria dos clérigos, de uma elite; outra, oral, dominante nas camadas populares iletradas, incultas. Diferente, mas não uma degradação daquela. Para expandir-se o cristianismo necessitava atingir o público, sair dos claustros, ir ao encontro do povo. A diferença entre as duas era mais de grau que de natureza, segundo Franco Jr (22:14), sendo os eruditos biculturais, daí a influencia recíproca que experimentaram.

A estratégia da igreja foi apropriar-se da tradição pré-cristã adaptando-a aos seus valores para angariar adeptos. Intenção esboçada na carta do Papa Gregório ao abade Mellitus, datada de 601, transcrita no capitulo XXX do livro 1 da “História Ecclesiastica” de Beda: “Por que se os templos são bem construídos, é indispensável que se convertam do culto dos demônios para o culto ao verdadeiro Deus. (...) o qual adorarão naquele mesmo local, com o qual estão acostumados, e mais facilmente irão, por ser familiar. Para a mudança de destinação dos templos é necessário aspergir água benta, construir um altar e nele por relíquias. Quanto aos ritos, os bois sacrificados naquele local não mais devem ser sacrificados aos demônios mas utilizados para louvar a Deus e sua carne deve ser doada para saciar a fome daqueles que trazem a graça divina (18:5)”. Depreende-se dessa atitude a ponte feita pela igreja entre os dois mundos separados por uma fissão cultural. Versões escritas de viagens célticas pré-cristãs e da viagem de São Brandão só surgem no século X o que torna impossível saber quanto há de semelhança entre elas, se ocorreu predominância de um dos substratos (18:11).

Foi o processo de fusão das duas culturas que fez da viagem de São Brandão, na sua ambigüidade, um produto anfíbio (18:8) isto é que continha elementos clericais e eruditos. Era o bastante para tornar a narrativa inteligível e do agrado de todos, garantia de sua popularidade e permanência no tempo.

A Idade Média foi a idade da fé, o apogeu do cristianismo, mas também uma era de angústia, de temor e incerteza diante da morte e do que encontrar além dela. Daí a necessidade curiosa de conhecer o Paraíso encontrá-lo, já que existia, já que estava em algum lugar da terra. Para combater os bárbaros era preciso não só descrevê-lo, mas torná-lo visível.

Era imperioso achá-lo; inúmeras aventuras, reais ou imaginárias, com este fim foram relatadas e absorvidas pela cultura da época. A pergunta que não calava era: como seria e onde se localizava o Paraíso?

 

5 – Dos paraísos


A resposta viria segundo representações de visões místicas e relatos de viagens, como a de Brandão, que replicavam modelo obediente a um certo padrão.

Entre as visões que ajudaram a construir uma imagem do Paraíso, nos textos escritos e na iconografia, destacamos as de Perpétua (Paixão de Perpétua), do eremita Zózimo (Narrativa de Zózimo) (18-9) ambas do século III, e da grande mística Hildegard Von Bingen. A “Legenda Áurea”, de Jacopo da Varazze (1228 – 98), muito contribuiu para a idéia de que céu, purgatório e inferno eram provisoriamente acessíveis aos terrenos (6-2:94) e para a descrição do Paraíso segundo o guardião de São Pedro no ano em que instituiu a festa de “todos os santos”. Dentro do que se poderia chamar literatura visionária não esquecer o Paraíso de Dante. “Le Roman de La Rose”, livro escrito em duas partes, a primeira, na década de 1230 por Guillaume de Lorris, e a segunda, cerca de 1275, por Jean de Meung, tornou-se famoso e popular por descrever o Paraíso e como acessá-lo. Nele todos viviam felizes e em liberdade.

Entre as inúmeras representações pictóricas, merece citação o retábulo de Saint Bavon de Gand, obra de Jan Eyck (1432), considerado por Delumeau o mais belo painel da cristandade (15:23).

Não obstante a proliferação de imagens do Paraíso, a ênfase da igreja esteve orientada mais para o inferno (15:30). A salvação deixa de ser um objetivo coletivo para se transformar numa aspiração individual. O medo do inferno mais que o desejo do Paraíso motiva o cristão a agir para salvar-se.

Quanto às viagens, mencionamos Amaro e Trezenzonio (“A grande ilha do solsticio”) os quais, assim como nosso herói, se deslocaram ao Paraíso e voltaram para discorrer sobre as maravilhas que testemunharam.

As referências ao Paraíso no evangelho são sóbrias, sem riquezas de detalhes, registradas, sobretudo, em Lucas e Paulo (6-2:31). Mesmo o livro do Gênesis descreve o Éden de forma sucinta: “O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores à vista de saborosos frutos para comer (...) um rio nascia do Éden e ia regar o jardim dividindo-se em quatro braços (...) o Senhor levou o homem e o colocou no meio do jardim do Éden para o cultivar e também para o guardar.”

Por aí se vê a diferença que há entre o reino dos céus que está na Bíblia e a exuberância em imagens e palavras das aparências subsequentes. Acréscimos feitos ao longo dos séculos por Judeus e clássicos latinos e gregos.

Tentamos identificar agora que elementos comuns informam essas diversas descrições do Paraíso narradas por viajantes sedentários e itinerantes.

Do ponto de vista do jesuíta Jeremias Drexel, autor de livros de sucesso no século XVII, e de muitos outros que abordaram o tema, o Paraíso era belíssimo, mas de difícil acesso (6:2:16). Situado em montanhas muito altas ou ilhas remotas, para atingi-lo fazia-se mister superar obstáculos e vencer barreiras surgidas no caminho do desconhecido. Os mapa-múndi medievais localizavam-no a oriente, identificado por símbolos que permitiam seu rápido reconhecimento. Brandão, sem realizar uma ruptura radical com esta tradição, deixa claro ter sido em sua expedição encaminhado para o ocidente. Na concepção da Idade Média não havia um, mas três Paraísos, o Terrestre, o Celeste, e a Jerusalém Celeste. O primeiro, referido desde o livro do Gênesis, marca para os cristãos, a partir de Adão e Eva, o início da história; o segundo, reservado aos mortos, habitado pelos espíritos, nunca descrito; o terceiro, uma incógnita a só se realizar quando da segunda vinda de Cristo para o julgamento final, o fim da história. A perda do Paraíso foi o primeiro mito, a sua reconquista a matriz das utopias (22-113). O pecado fechou a porta para o homem, o sacrifício de Cristo reabriu-a para os merecidos. Descrevê-lo, pelos que tivessem o privilégio de encontrá-lo, era sinal para os outros de sua existência e a esperança de que um dia o alcançariam.

Hilário Franco Jr. (22-121) considera que de forma geral o Paraíso da literatura possuía cinco características: natureza pródiga, saúde, harmonia, imortalidade, unidade. É com base nelas que a literatura edênica discorre sobre esse sítio de delícias encoberto por neblina e nevoeiro, mas devassado, revela sensações físicas agradáveis, grandes belezas, um maravilhoso bem estar. Clima ameno e estável, fontes, ar puro, rios, mel e leite, coros de anjos, árvores e frutos, luminosidade perene, pedras preciosas. Um ambiente feito de riqueza, fartura, abundância e plenitude, saciedade dos desejos. Limitada por um rio fica uma área interditada a qual só se tem acesso após a morte, o Paraíso Celeste. Para o mesmo autor a unidade com Deus seria o maior benefício que o homem gozava no Paraíso. A expulsão privou-o do contacto com Ele, impediu-o de “saborear a palavra de Deus” na expressão de São Gregório Magno (22:135). A unidade foi uma obsessão da cristandade ocidental, comprometida em intervalos da história. Daí imaginar-se em certos momentos que “a um só Deus deveria corresponder uma só língua, um só estado, uma só cultura, um só conjunto de leis, um só comportamento. Onde está a unidade está a perfeição”, ensinava São Bernardo.

Quanto ao Paraíso Terrestre, é importante lembrar que São Tomás de Aquino em sua “Suma Teologica” já afirmava que este possuía duas naturezas, “uma material, conforme o relato do Gênesis, e outra alegórica, ilustrando a virtude inicial do homem e o pecado da desobediência” (17:123). Embora a Idade Média aceitasse sua materialidade vozes discordantes na igreja preferiam fazer do Gênesis uma leitura alegórica. O próprio Santo Agostinho compartilhava desta leitura ainda que tenha afirmado ser a narrativa do Gênesis de “fatos reais” (17:37).

O período medieval visto como uma época de obscuridade e intolerância que acendeu a fogueira das perseguições religiosas experimentou na baixa Idade Média significativa evolução cultural, importante para o advento do Renascimento. Embora as Cruzadas constituam episódio relevante dessa etapa da história, ela se caracterizou por uma valorização e maior utilização da escrita com um emprego crescente do vernáculo e a expansão da atividade cultural laica. Data desse tempo a criação dos “studia generalia”, primeira denominação das universidades. A essa efervescência cultural que extrapolou os muros dos mosteiros, reduto da cultura erudita, clerical, Le Goff chamou de “reação folclórica” (17:11). Enquanto as histórias populares insistiam na descrição do Paraíso como algo concreto, a cultura erudita, mais racional, investia no etéreo, na sua imaterialidade. Então o átrio das igrejas era chamado de “parvis” (paraíso em francês), e os claustros buscavam reproduzir o ambiente de harmonia típico do Paraíso. O objetivo do “parvis” era transmitir a idéia de um campo de paz à espera da ressurreição, o novo Paraíso Terrestre, onde os justos estariam depois do julgamento final na Jerusalém Celeste simbolizada pela igreja (15:124).

A igreja, até então confinada nos mosteiros e abadias, foi sacudida pela ação de São Francisco, entre os séculos XII e XIII, que, em meio a um processo acelerado de urbanização, lançou a utopia da fraternidade. Em comunhão com os miseráveis, com os animais e com a natureza em completa harmonia buscava edenizar o mundo. Via em todos a presença divina, por isso os valorizava. Na convivência fraterna entre os homens e destes com a natureza residia o equilíbrio e a perfeição paradisíacas. Por imitar a vivência de Cristo foi chamado de alter Christus; por pregar a rearmonização do mundo era também o alter Adamus (22:129).

Lutero, o reformador, fundador do protestantismo, contribuiu para uma concepção mais abstrata do Paraíso, cada vez menos um lugar, mais uma disposição espiritual de cada um. São dele as palavras: “Se quiserdes conhecer reino de Deus, não há necessidade de que procureis muito longe, nem de que mudeis de país. Ele está perto de ti; e o que é mais, Ele não está apenas perto de ti, mas em ti”. Ou, ainda com ele, “Da mesma maneira que os filhos no corpo de sua mãe sabem pouco sobre seu nascimento, sabemos pouco da vida eterna” (6:2:405/406).

Swendenborg (1688-1772), filho de um bispo sueco, fez carreira como técnico e cientista, tendo mais tarde visões do além, que descreve em várias obras, é considerado o criador do céu moderno. É uma espécie de Paraíso em movimento. Isso se dá de duas maneiras: quando após a morte os defuntos chegam a um mundo espiritual, hora de decidir definitivamente entre a subida ao Paraíso e a descida ao inferno; aquele por sua vez, comporta de baixo para cima três níveis, o natural, o espiritual e o celeste, nos quais é possível ascender, numa dinâmica de purificação (15:468). Como no Paraíso de Dante há uma hierarquia de distribuição dos bem aventurados em patamares diversos, segundo cada um venha a merecer. Distante da imobilidade do céu medieval há uma constante atividade dentro de uma dinâmica espiritual de prestação de serviço que em muito difere da visão beatifica estática. Nova visão que vem coincidir com a descoberta do conceito de progresso pelo pensamento ocidental (15:468).

Santa Teresa de Lisieux não apenas se junta à corrente espiritual que defende intensa atividade no Paraíso, como substitui a expressão por céu. “Espero realmente não ficar inativa no céu, meu desejo é o de trabalhar ainda pelas almas”, disse poucas semanas antes de morrer (6:2:469).

Invoca-o sem descrevê-lo. Para ela é mais importante vivê-lo que sua visualização. “Eis meu céu (...) eis meu destino: viver de amor”, palavras que lembram o comedimento de Lutero e outros em relação aos textos e iconografias do Paraíso.

Na mesma linha de transição mental da concepção de Paraíso, Santa Brígida da Suécia, célebre mística, afirmava o caráter espiritual de suas revelações ao dizer que seus “olhos espirituais estavam abertos para ver” (15:92).

Ruysbroek, o admirável, contemporâneo de Santa Brígida, de grande influência na devoção moderna, foi mais radical ao reagir ao imaginário espiritual dessas visões. Assim se manifestava: “Ali onde acabam os céus corporais, ali também se detêm a imaginação e os sentidos exteriores; pois, quando não há mais matéria, não há nada a que se prendam os sentidos: nem Deus, nem os anjos, nem as almas podem ser apreendidas por eles, pois são sem figura. O “supremo sabor” está no “não saber e na perda eterna de si” (15:93).

Idas e vindas ao longo dos séculos acabaram por assinalar a vitória da palavra sem imagens sobre o paraíso imagético da tradição cristã, cada vez mais desacreditado em comparação com o primeiro. O fenômeno decorre segundo Jean Delumeau (6:2:470), entre outros fatores, da catequese comum às duas reformas religiosas; da sobriedade protestante e jansenista e, naturalmente, da nova astronomia.

As narrativas afetas à cultura folclórica, e os mapas, de origem erudita, pertencem a estratos culturais diferentes, não obstante, formam um conjunto onde se complementam para ajudar a entender um tempo marcado por grande religiosidade e crença na bíblia (17:136). Os mapas mostram a hierarquia do fiel, as narrativas ajudam a vivenciá-las (17:135). Urge, pois, não encerremos sem lançar um olhar sobre os mapas.