quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A viagem de São Brandão - O Paraíso na Terra - Parte I

Lúcio Alcântara

Médico, presidente do Instituto do
 Câncer do Ceará, membro da
 Academia Cearense de Letras.


E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta,
Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas,
Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

(Tinta remota e desbotada aqui presente para além da morte,
O que de negado à nossa vida quotidiana vem nas ilustrações,
O que certas gravuras de anúncios sem querer anunciam.

Tudo quanto sugere, ou exprime o que não exprime,
Tudo o que diz o que não diz,
E a alma sonha, diferente e distraída.

Ó enigma visível do tempo, o nada vivo em que estamos!)


(Álvaro de Campos / Heterônimo de Fernando Pessoa)


1 – Das formas de viajar


“Viagem e literatura” é o assunto selecionado para o ciclo de conferências organizado anualmente pela Academia Cearense de Letras. Viagem no sentido amplo da palavra. Muito mais que o deslocamento físico em um espaço externo. Viajar é transitar no real e no imaginário. Conhecer e conhecer-se. A possibilidade mágica de ir a muitas partes sem arredar pé de seu lugar. Tudo isso porque o homem é o único animal capaz de pensar e sonhar e os livros são esses instrumentos maravilhosos que nos transportam a bordo da imaginação alada. O curso livre da fantasia implica na errância do sujeito, ousado ao partir, desapercebido do ponto de chegada.

Relatos de viagens, fictícias ou autênticas, fantásticas, satíricas, ou descritivas de terras e gentes, acabaram por constituir uma categoria literária, a chamada literatura de viagem.

De viagens empreendidas pelo homem no seu interior trataram, entre outros, Xavier de Maistre em seu “Viagem à roda do meu quarto”, assim Descartes no “Discurso do método” e o nosso Machado de Assis no conto “Viagem à roda de mim mesmo”. Ainda caberia mencionar, no campo da exaltação transportadora onírica, a viagem enganosa das drogas, passaporte sedutor para a ruína física e moral dos usuários.

Face às várias hipóteses disponíveis para realizarmos nossa jornada comum, todas dotadas de fascínio e encanto, pincei uma das mais populares viagens medievais ao além, cuja ampla difusão refletiu na cartografia até muito depois da Idade Média. Refiro-me à “Viagem de São Brandão”, peregrinação marítima em busca do Paraíso.

Será esta nossa aventurosa expedição pelos ínvios caminhos de uma era labiríntica, farta de versões e alegorias que confundem a história e a fantasia, origem das incertezas sobre fatos, nomes e lugares distribuídos em alfarrábios e cartas geográficas. Nautas do desconhecido, aprendamos juntos, vocês e eu, afinal ainda a melhor forma de ensinar.


2 – Da vida de São Brandão

São Patrício foi o evangelizador da Irlanda no século V e Brandão, nascido em 484 e falecido em 577, um dos continuadores de sua obra. De origem nobre, abandonou as riquezas materiais para fazer-se monge e logo um abade peregrino, fundador de mosteiros nas ilhas britânicas que, graças às suas virtudes, teria reunido em torno de si cerca de três mil seguidores. (17:36). De sua dinâmica atuação para o desenvolvimento do monaquismo irlandês fala o mosteiro da cidade de Clonfert, em cuja catedral fica estátua sua, razão de ser conhecido como São Brandão de Clonfert. Seus constantes deslocamentos em terra não o tornaram tão conhecido e popular durante séculos quanto à viagem marítima que empreendeu por sete anos que lhe valeu a alcunha de “Brandão, o navegador”. Por suas características fantásticas, impregnadas de misticismo, a narrativa da “Navigatio Sancti Brendani”, considerada por Lemarchand (6:6) uma espécie de “Odisséia, uma Eneida cristianizada”, impõe-se perante a história face à “Vita Brendani” texto hagiográfico pouco valorizado. Não é exagerado considerá-lo um precursor de Dante.


3 – Da Viagem peregrina

Da viagem de São Brandão contam-se cerca de oitenta versões tendo chegado até nós algo como cento e vinte manuscritos, o que informa sobre a larga circulação do texto. Divergências e contradições entre eles explicam-se pelo enorme tempo decorrido entre a difusão oral e a transposição para a linguagem escrita. Quinhentos anos separam a viagem ocorrida no século V até sua transcrição para o latim no século X, por um monge irlandês fugitivo de perseguições religiosas que vivia em um mosteiro renano.

Uma segunda alteração significativa, além da conversão da tradição oral popular de fundo celta para a forma erudita escrita, surgiu no século XII por volta de 1120, variante escrita em anglo-normando (francês antigo) pelo arcebispo Benedeit, a pedido da rainha Matilde e a ela dedicada. Matilde, mulher de Henrique I, filho de Guilherme, o conquistador, cercada de poetas, estimulava a leitura de textos na corte numa espécie de vassalagem literária (6:6) então em voga. Era tempo de transição, marcada pelo emprego das línguas romances no lugar do latim e da leitura para um público alvo em substituição às narrativas recitadas para anônimos (6:6).

A descrição da viagem e seus preparativos, refundida por Benedeit, suprime passagens de caráter acentuadamente monástico em detrimento de sua natureza religiosa. O que a aproxima da literatura cavalheiresca (17-34). Sobre ela, iremos demorar o nosso olhar ávido por desvendar este mistério feito de realidade e ficção.

O móvel único da viagem de Brandão foi o seu desejo de conhecer, antes de sua morte, o Paraíso. Orou a Deus pedindo para visitar o reduto dos bons “onde se assentou Adão” (6:14) e também o inferno, lugar destinado aos maus.

Obstinado em sua vontade de encontrar a primeira casa do homem, procura o ermitão Barinto, recluso em um bosque, para com ele se aconselhar. É então que ouve o relato do monge sobre seu afilhado Mernoc que em viagem marítima encontrou a ilha deliciosa, a que mais tarde o próprio também contemplou e cujas maravilhas descreveu a Brandão. A narrativa o fez decidir empreender a viagem em busca da “Terra Repromissionis Sanctorum”, ou simplesmente o Paraíso Terrestre, de onde nos afastara o pecado do casal fundador da humanidade.

Na versão holandesa (19:2), a aventura de Brandão não teria se inspirado na narrativa de Barinto, mas seria a punição de um anjo que o teria surpreendido ao atirar ao fogo um livro por descrer dos milagres da criação.

Inicia a preparação para a jornada selecionando 14 monges entre seus melhores seguidores, advertindo-os “de que tudo ignoramos na nossa empresa e quais as tormentas que nos aguardam”. Providencia a construção de um barco (curragh), típico da Irlanda, feito de couro esticado sobre uma armação de madeira, abastecido com víveres suficientes para quarenta dias. Tudo isso fez no “sítio onde a terra acaba” (6:19), um penedo agreste depois denominado salto de São Brandão, em cujo sopé havia um porto, lugar de partida da empreitada. Não sem que antes de embarcarem surgissem na praia, aos gritos, três monges que imploraram para se juntarem à comitiva. Sabedor, mercê de Deus, do que os aguardava acolheu-os e informa-os que “dois deles satã diabo há de levar (6:21) e o terceiro tentação irá sofrer.”

Abençoados por Brandão todos embarcaram, sendo ele o último a fazê-lo, compromissados em jejuarem durante quarenta dias e três vezes por semana. Feitos ao largo, foram impelidos para ocidente pelo vento que soprou do oriente.

Quando faltou o vento, por um mês, extenuados de remarem, vendo esgotarem-se os mantimentos em meio à calmaria, amedrontados ouviram do abade a palavra de fé “Aceitai aquilo que Deus nos manda/e nem um sequer sinta temor/se o vento soprar as velas nos levam/se o vento cair, pegamos nos remos” (6:23).

Avistaram, ao longe, terra de altos montes tendo gasto três dias para aportarem em meio a perigos do choque de ondas contra falésias e penhascos até ancorarem em águas serenas de um porto escavado na rocha. Eram chegados à ilha Selvagem onde se depararam com um castelo feito de mármore, pedrarias, ouro e suprimentos servidos em ricas baixelas sem que, entretanto, surgisse pessoa alguma. Recomendando moderação do que se servissem sabia Brandão do que estava por vir. Quando dormiam, satanás a um seduziu para que roubasse um valioso graal de ouro, gesto percebido pelo abade, pois “quando Deus quer algo mostrar não há precisão da luz de uma vela” (6:27). Ao apontar o ladrão, o abade anuncia sua morte, confessa-o, absolve-o e logo se ouve o diabo sair gritando “Qual a razão porque me expulsas de minha casa?” Todos viram a morte chegar e levá-lo ao paraíso. Ele era um três irmãos acrescentados por último ao grupo.

No porto, são visitados por um mensageiro que lhes leva pão e água, tranqüiliza-os quanto à viagem e o achado do que buscam, assegura-lhes que tudo será provido a tempo. É sob a proteção de Deus que navegam.

Decorrido quase um ano, desembarcam em terra povoada por rebanhos de grandes ovelhas e em cada, um velo branco. Estavam na ilha das Ovelhas. Era quinta-feira, dia da última ceia. Ordenou-lhes Brandão prepararem uma delas para a ceia pascal, decidido a aí se quedar por três dias.

Ao mensageiro de brancos cabelos e olhar juvenil que surge, inquiriu Brandão sobre o lugar obtendo resposta discreta: “Tem muito de seu e de sobejo / quem sabe pensar com o seu coração” (6:31). Disse-lhe ainda serem grandes as ovelhas por não sofrerem doença, nem ordenha e estarem imunes à morte. Orienta-o a celebrar sua festa em ilha a vista e de regresso, na noite seguinte, com a promessa de encontrá-lo em outro lugar para provê-lo do que precisasse. Assim procedendo, chegaram à ilha a que deram por nome Nua, onde oficiaram o santo serviço por toda noite até a manhã.

Temperaram a carne e assaram-na. Quando estava no ponto para comerem-na, eis que gritam pelo abade assustados sobre a terra que tremia. Resgata-os para a nave, enquanto a ilha afasta-se veloz, distinguindo-se muito ao longe o lume que atearam sobre ela. Aos irmãos cheios de pavor, explica que estiveram na verdade sobre o dorso de um enorme peixe, Jascónio, o primeiro por Deus criado. Esse e outros prodígios vindouros haveriam de lhes fortalecer a fé.

Corria no alto mar a nave, quando avistaram, alta e clara, a terra anunciada pelo mensageiro. Arribaram e subiram pelo leito de uma ribeira dando no sítio da fonte do riacho com uma árvore de mármore de folhas grandes, brancas e vermelhas. De alto a baixo pendiam ramos em frondosa copa, pouso de aves brancas nunca vistas tão belas. Era a ilha dos Pássaros ou dos Pombos. Paraíso das aves anunciou uma delas, pousada na nave. Ato contínuo comunicou a Brandão que eram anjos caídos, castigo de Deus ao mestre do bando que, nomeado para ensinar as virtudes divinas, se fizera malvado e soberbo desdenhando da sua palavra.

Por terem-no seguido foram privados de contemplar a majestade e a glória de Deus.

Há um ano no mar, mais seis, cheios de penas e males, se passariam até que atingissem o Paraíso, sendo certo que todos os anos celebrassem a Páscoa no dorso do peixe.

No declínio do dia, ouviram-se os pássaros entoarem um coro de vésperas, alegres com a primeira visita de gente humana. E com eles cantaram os monges as completas e as matinas.

Viram chegar o enviado de Deus que mais uma vez garantiu-lhes provisão e repouso até a oitava de Pentecostes, quando abalaram para navegar por oito meses, após mil provações, até a ilha de Albeu, onde estariam pelo Natal. Aí chegaram, passados quarenta dias a bordejar a costa, sem ancorarem em porto algum (6:41). Acharam logo uma fonte com duas águas, uma clara e outra turva, tendo aparecido um ancião que, de pronto, os conduziu a uma rica abadia onde monges, em suntuosas túnicas, com eles confraternizaram. À mesa farta comeram e cantaram salmos e o “miserere”.

A seguir, contou-lhes o abade serem vinte e quatro os que seguiram Santo Albeu, morto há oitenta anos que, chamado por um mensageiro vindo do céu, deixou feudos e riquezas para nessa ilha fundar o mosteiro. Hoje, prosseguiu, é Deus quem nos sustenta, tudo prevê, sem que se peça em sítio algum, e se saiba de onde vem. Da água clara bebemos, com a turva lavamo-nos. “Quando falta a luz do sol, acendem-se as candeias sem precisão de azeite ou cera. Sozinhas se apagam, sozinhas se acendem”. (6:46)

Por fim, indica que deveriam partir no oitavo dia da Epifania à hora prima. Maravilhado com o que vira, Brandão diz, “Nada me dá mais gosto que viver e estar num lugar assim”. Ao que lhe respondeu o abade: “É teu dever seguir na demanda que começaste e depois regressar ao teu país onde nasceste e hás de morrer” (6:46).

Chegado o dia marcado, abalaram, afastando-os da ilha de Albeu um “vento divino”. Por muitos dias vogaram no mar coagulado, “espesso como um paul”, que até temiam a nave atolar-se. Em ingente esforço, agravado pela sede e escassez de víveres, tangidos por “um vento rijo” aportaram na foz de um rio de águas claras quando se fartaram de peixe e abusaram de uma bebida feita de ervas do lodo das margens, desobedecendo aviso pregado pelo abade. De tanto beberem pareciam loucos. Depois, acometidos de um sono pesado ”assim jazeram por dias seguidos” (6:48). “Fujamos daqui para não cairdes no esquecimento. Mais vale a fome e guardardes a honra que esquecer a Deus e a oração”, ordenou-lhes Brandão.

Após vinte dias de navegação, voltaram à terra do ancião encanecido “onde lavaram os pés e comeram a ceia como diz e manda a Santa Escritura” (6:49).

A páscoa celebraram em paz na ilha do Peixe, onde logo viram o caldeirão guardado por Jascónio no dorso.

Então, aproaram para a ilha das aves, saudados por cânticos, quando uma delas falou-lhes que aí ficariam até a oitava de Pentecostes. A cada ano da viagem, para lá voltariam comemorada a Páscoa no dorso do peixe e o natal na ilha de Albeu.

Servidos de tudo pelo providencial mensageiro singraram para o ocidente com vento de popa. Num mar dormido, quase morto, vogaram por três quinzenas. Foi então que sentiram um frio nas veias em meio à grande tormenta; transidos de medo depararam-se com uma serpente saída do mar que os perseguia veloz com mais de mil dentes na fornalha da boca soltando bramidos de mil touros; fazendo altas ondas, acercava-se dos peregrinos. Foi quando Brandão pronunciou então palavras de fé, “Pois aquele que por Deus é guiado não deve temer besta a mugir” (6:53). Logo surgiu outra serpente que contra a primeira travou luta feroz, cabeças no alto, narinas flamantes, golpes de patas, escudos de asas tingiam de sangue a água do mar. Por fim, venceu a última serpente recolhida depois à sua morada. Foi o socorro de Deus em cujas mãos deixam tudo.

Dias depois arribaram e desembarcaram assustados por uma grande tempestade que arrastou à terra um monstro marinho que, retalhado, matou-lhes a fome por muitos dias.

“Vede irmão, aquela que era nossa inimiga nos dá ajuda pela graça de Deus”, dirigiu-se assim Brandão aos companheiros.

Baixava dos ares enorme perigo, um grifo tremendo para os levar nas patas enormes, cujo vento do sopro tombava a nave, expelindo chamas pela garganta. Foi então que apareceu um dragão que lhe deu terrível combate e o grifo abateu precipitado no mar.

Por ocasião da festa do dia de São Pedro “entoava o abade em voz alta e muito clara” (6:59) um sacro serviço, quando foi advertido do risco que corriam face a guerra de peixes enormes que a água cristalina deixava-os enxergar. Recusou-se o abade a baixar o tom cantando mais alto e mais claro a glória de Deus, que nunca os desampara, exortando-os a rogarem o perdão de suas culpas. Do mar saídos monstros enormes acercados da nave “gozaram a seu modo” o dia de festa, tornando às moradas encerrado o ofício do dia.

Vogando em frente, adiante viram brilhar grande coluna no alto mar. Assentada no fundo do mar subia a prumo até às nuvens “(6:61) toda feita de rubi e lavores de ouro, adornada de muitas bandeiras. No interior da coluna, abade e irmãos divisaram rico altar com sacrário de ágata, colunas de ouro, candeias de berilo. Aí demoraram três dias dizendo missas até que, pensando melhor, resolve Brandão partir por não achar bem querer desvendar os segredos de Deus.

De novo no mar, cheios de fadiga e esperança, de súbito avistaram uma terra escura, fumegante, de onde exalava podridão pestilenta. Sem que conseguissem singrar contra o vento em vão tentaram se desviar do indesejado destino. Instruído de tudo o abade falou e disse: “Senhores sabei que para o inferno vos levam a força / jamais como hoje tivestes precisão / que Deus vos acuda e vos dê amparo” (6:63). Não se enganara, bem perto dali era o inferno.

Ao acercarem-se descortinaram o horror das trevas de abismos e vales de onde rugia o vento soprado por foles e ecoavam estrondos tremendos acompanhando nos ares labaredas e espadas candentes.

Eis que sobre um monte, um colosso de diabo ardendo em chamas, cuspindo fogo, de olhos em brasa, sustenta um cutelo saído da forja em uma tenaz “de peso maior que dez juntas de boi” (6:65). Lançado o cutelo contra os visitantes não os atingiu, caiu no mar ficando a queimar como “urze a arder no campo queimado” (6:65).

Fugidos do sinistro lugar, levados por vento de popa, viram de longe a ilha a arder “envolta em fumo tenebroso e espesso (6:65) ouvidos ao longe dos diabos os uivos, dos condenados brados e prantos.”

A salvo do perigo permaneceram na fé sem abalo depois de conhecerem a morada dos condenados.

Pela manhã, avistaram terra. Uma alta montanha envolta em nuvens para onde os empurrava um vento forte. Para terra tão negra saltou um irmão sem que se soubesse nunca a razão. Jamais o viram, só sua voz escutavam a dizer, “Senhor, ele bradava, de vós me apartam. E sou prisioneiro dos meus pecados como sabeis”. O abade, que tudo assistia e sabia, via mil diabos a arrastá-lo e vociferar.

Quando as nuvens descobriram o monte, abriu o inferno suas goelas cheias de paus e cutelos em fogo numa atmosfera de pez e enxofre.

Navegando, viram um grande vulto que lhes pareceu abrupto rochedo, determinando o abade que para lá se dirigissem.

Ao chegarem, viram espantado um homem sentado no alto, o corpo esfolado, a pele rota caída em franjas, um trapo nos olhos, agarrado à rocha batida por ondas tão fortes que ameaçavam levá-lo.

Inerte e cansado queixava-se:

“Ai Jesus, rei majestoso,


Que a morte venha no inverno ou no verão!


Jesus tu que fazes mover os astros e mover os tronos por tua graça e tua bondade!


Jesus, tem misericórdia sê generoso


E diz-me a hora do meu consolo.


Jesus de Maria nascido,


Pelo que fiz não ouso nem posso


Implorar a tua graça e a tua mercê


E o meu julgamento foi de justiça.” (6:69)


Ao ouvir este lamento sentiu Brandão dor jamais sentida “e, ao aproximar-se, acalmou-se o mar sem vento a agitá-lo. Fitando-o indagou quem era, a razão de sua desdita, para então romper em convulso pranto. Apresentou-se o outro como Judas, “aquele que serviu e traiu Jesus / aquele que vendeu seu amo / e de nojo e desgosto se enforcou / fingi o amor para o beijar / e trouxe a discórdia e não a paz” (6:70). E prosseguiu narrando o sofrimento do arrependido desgraçado que se matou sem confissão e foi condenado dia a dia.

Todo aquele martírio, disse o desventurado ao abade, representava uma trégua diante dos padecimentos no inferno que sofria todos os dias até sábado ao cair da noite.

O alívio das penas, “descanso”, digamos assim, expressão empregada por Judas, era reservado aos domingos. Ao tempo da Páscoa e de Pentecostes. Por quinze dias chegado o Natal no rochedo alivia-se de sofrimento; nas festas em honra de Maria não sofre pena alguma.

Curioso indaga o abade, que torturas suporta, qual o lugar do seu sofrimento, que lhe permite chamar de descanso o tormento dos dias de exceção? É no feudo dos diabos, muito próximo, onde há dois infernos, um monte e um vale, separados por um mar de sal, que por sorte não arde, responde-lhe o condenado. Então descreve o que sofre nos dois na cronologia dos suplícios cruéis distribuídos pelos dias da semana. “As penas do monte são mais penosas e mais horrendas as penas do vale” (6:73) aplicadas ora num ora no outro sítio, as torturas alternam-se terríveis entre o calor e as brasas do monte e o frio gelado do vale que considera a maior das torturas que pode sofrer.

Roga a Brandão o desgraçado que, como “homem de méritos, santo e piedoso, vindo de boa fé (6:77) socorra-o que mil diabos já vêm para conduzi-lo de volta ao inferno”. Do dinheiro sobrado das esmolas que deu, comprou uns trapos a um miserável que posto na boca impede-o de engolir a água do mar tendo ainda lançado ponte sobre a ribeira que evita as pessoas de ali se afogarem.

Chegaram os demônios, e eram mais de mil, com ferramentas de atormentar, e foram direto ao infeliz quando o abade gritou a um mais afoito com um gancho na mão: “Deixa-o em paz. Até a manhã de segunda-feira” (6:78). Recuando diante da ordem dada em nome de Deus libertaram a presa com a ameaça de penas dobradas. “Não há mais tortura que a destinada no julgamento” (6:79).

Quando a madrugada surgiu apossaram-se os diabos de Judas.

Afastou-se Brandão daquelas paragens, todos confiantes na proteção divina para guiá-los. Foi quando ao contarem os companheiros deram pela falta de um deles do qual ignoravam o paradeiro a diferença dos outros dois desaparecidos. Sabedor de tudo falou o Abade: “Sempre Deus faz o que lhe apraz. Não duvideis e não temeis, mantende firme o vosso rumo. Chegou o dia do julgamento do nosso irmão. Chegou a hora do seu repouso ou seu tormento” (6:79).

Agora foi uma alta montanha que divisaram sobre o mar, uma costa alcantilada, onde encontraram o ermitão Paulo vestido com seu cabelo mais branco e luminoso que a neve. Sem padecer doença, ali vive há noventa anos no aguardo do juízo, alimentado durante trinta anos por uma lontra, que lhe trazia peixes e um dia partiu. Após o que, de água vive há sessenta anos oriunda de uma fonte que de tudo o sacia “e não sente falta de manjar algum (6:83). Cinqüenta anos vividos no mundo dão-lhe cento e quarenta de idade.

Por fim, anunciou que Brandão irá ao paraíso depois de sete anos de demanda. Antes, voltará onde esteve e na companhia do “bom hospedeiro”, a quem seguirá como guia, chegará ao Paraíso, morada dos santos.

Despedindo-se do ermitão cuidaram de navegar de regresso até acharem porto em meio à névoa espessa, na quinta-feira, dia da ceia. Repousados, remaram ao peixe servidor e amigo sobre o qual pela vez última a Páscoa comemoraram. Tangidos por vento de boa feição tornaram à Ilha das Aves, onde se atardaram dois meses inteiros. Provisionados do quanto poderiam precisar fizeram-se ao largo acompanhados pelo leal hospedeiro.

Quarenta dias singraram sem nada avistar a não ser o mar e o céu nas alturas. Deram então com denso nevoeiro feito de nuvens negras que já não permitiam o regresso, engolidos por neblina cerrada e escura.

“Não demoreis. E fazei a vela tomar o vento que é de feição” (6:86). Ao aproximarem-se, abriu-se um espaço da largura de uma rua por onde seguiram até que ao quarto dia emergiram da névoa e, de longe, descortinaram o paraíso.

Viram primeiro alta muralha sem ameias, passadiço, nem barraca ou atalaia, cravejada de gemas e gotas de ouro ali engastadas. “Por cima do mármore daquele monte está outra montanha de ouro fino e mais acima os muros que encerram as flores do Paraíso” (6:87).

A entrada acharam-na bem guardada por uns dragões cuspindo “fogo de chamas ardentes. Da porta pendia espada afiada com a lâmina apontada para o lado de baixo” (6:87;88). De súbito surge um donzel que os chama pelos nomes apazigua os dragões e, humilde, pede a um anjo que cesse o rodopiar da espada.

Aberta as portas, seguiram o donzel que lhes foi mostrando os encantos do Paraíso. Jardins, árvores frondosas, flores e frutos que se abrem em qualquer estação. Veados sem conta, saborosos peixes nadam nos rios; nos campos correm regatos de leite; o mel escorre de arbustos e juncos; ergue-se um monte abundante em gemas e ouro onde o esplendor do sol é eterno “Quem ali mora penas não sofre (6:90). Nem calor, nem frio, sem nada perder de tudo achará” (6:90). Descreve o donzel prazer e delícias que o morador haverá de gozar.

No alto de um monte, de ciprestes coberto, um coro de anjos canta a alegria pela sua chegada numa melodia “tão doce e tão branda que fazia sofrer” (6:91).

“Mais adiante não vos posso levar, daqui regressemos”, diz o donzel. Brandão, algo já viste, tal como a Deus suplicaste. Da sua glória muito há a ver, cem mil vezes e ainda outro tanto. Quando voltares em breve, virás com o teu espírito. Agora vai, quando voltares é para esperar a hora exata do teu juízo. Leva contigo algumas das pedras mais preciosas são uma prenda e um sinal para teu conforto” (6:91).

“Despediu-se de Deus e de todos os santos o abade Brandão e guiados pelo donzel chegaram à nave na qual embarcaram. Içada a vela, súbito desapareceu o leal hospedeiro. O Paraíso era seu feudo” (6:92).

Alegres zarparam para a Irlanda, chegarem três meses depois. Pronto correu por todo o país a nova de que o abade Brandão voltara do Paraíso. A todos narrou a história em minúcias, apertos e gozos, de como foi pedido e por Deus atendido. Dos seus irmãos companheiros muitos a santos chegaram por suas virtudes.

Quanto a ele chegada a hora de sua morte “regressou ao lugar que Deus destinara. Brandão abalou para o reino de Deus e graças a ele para ali o seguem mil e mais de mil (6:93).


4 – Da simbologia e contexto histórico da viagem

A proeza de Brandão, uma viagem ao além como outras tantas em que foi pródiga a Idade Média, insere-se no período entre os séculos VIII e X originadas de antigas lendas celtas adaptadas nos mosteiros à feição cristã (18:7). Serviam assim ao propósito de difundir o cristianismo incipiente – não esqueçamos que Brandão foi um dos primeiros cristãos da Irlanda – como instrumento de conversão da população. Assim é que a “Navigatio Sancti Brendani” pode ter sua origem na lenda de Bran, uma antiga “imram” (história maritima) irlandesa. Nela o herói viaja em busca da terra venturosa por ilhas remotas até chegar ao país das mulheres onde, sem coragem de descer à terra, é laçado e arrastado pela chefe delas (30:40). O relato de Brandão é considerado um paradigma entre as descrições de viagens ao além, comuns na Idade Média. Essas descrições obedeciam a certos procedimentos narrativos identificados por Paulo Lopes que garantem a essas manifestações escritas “uma forma literária autônoma no panorama da prosa medieva” (32:7,8). Segundo ele, em resumo, seriam os seguintes os elementos estruturantes dessas histórias: respeito por um itinerário; ordem cronológica; ordem espacial (o papel central das cidades); a presença dos “mirabilia”; ausência de uma clara separação entre geografia, história, lenda e mito; dar a conhecer o mundo; ausência de ações paralelas; narração linear e contínua. Recurso a primeira pessoa, (predomínio do eu); privilégio aos dados externos; apresentação de histórias intercaladas; articulação do discurso documental com o literário, prevalecendo, todavia, sempre o primeiro.

A ilha visitada por Bran seria a Avalon do rei Arthur, que surge como a ilha Afortunada, análoga ao Paraíso, onde seus habitantes vivem em paz, sem medo da morte e das mazelas do mundo. Descrito no texto anônimo “Viagem de Bran” como um abrigo encantador que fica além do horizonte sem acesso à navegadores e aventureiros (42:44; 33:44).

A narrativa de São Brandão está dividida em três partes: preparativos; percurso pelas ilhas com o registro das ocorrências e a chegada a “Terra Repromissionis”, por fim retorno à Irlanda e morte do santo.

O maior espaço concedido à viagem em si indica sua natureza peregrina, iniciática, de preparação espiritual para a chegada ao Paraíso. Movia o abade o desejo de conhecer antes de sua morte “qual morada corresponderá aos bons e qual lugar ocuparão os maus”. Se havia um Paraíso na terra, perdido para o homem pelo pecado, era preciso encontrá-lo, e recuperá-lo, para os que o merecessem. A materialização do Éden era fundamental para convencer os pagãos, daí sua incessante busca na Idade Média. Não obstante sua raiz pagã, o itinerário do abade tem iniludível conotação cristã que o caracteriza como uma “peregrinatio pro amore Dei.” Por essa época, a peregrinação era uma prática individual, só a partir das Cruzadas se tornariam coletivas, em contraste com a reclusão das abadias (30:33). O texto traz 41 referências diretas à Bíblia sendo 33 ao velho testamento (1:12). São mencionadas celebrações de ofícios religiosos e comemorações das festas da Páscoa e de Pentecostes. Valorizada a ascese, a prática do jejum, o eremitismo como forma de crescimento espiritual, a fé inabalável que os guia e alimenta. Refeições frugais, feitas de pão e peixe, ou de água exclusivamente, providas por um misterioso mensageiro configuram um quadro de “auto-contentamento com uma vida simples divinamente assistida” (9:12).

O embate entre os monstros admitido por Deus é a luta entre o bem e o mal, a vitória da vida sobre a morte. A viagem do santo era física e espiritual, marcada pelo despojamento e a entrega nas mãos de Deus. Impera o silêncio, os diálogos são poucos e curtos, a não ser o que se dá entre ele e Judas, o clima é de meditação, isolados no mar, a versão líquida do deserto, sem referência alguma a pericia ou habilidades náuticas. Perdidos na imensidão do oceano, submetidos a provações, fortalecidos na fé, estavam seguros do êxito da empresa. O cristianismo é a religião da salvação, mas para salvar-se é preciso perder-se, abandonar-se aos desígnios divinos. Seguir a lição que purifica os sentidos e o espírito ensinada por São João da Cruz: “Para vir a gostar tudo, / Não queiras ter gosto em nada. / Para vir a saber tudo, / Não queiras algo em nada / para vir a possuir tudo / não queiras possuir algo em nada” (9:26).

A alegoria da alimentação à base de pão e peixe lembra a comunhão eucarística. “Ictus”, peixe em grego, recorda um símbolo tradicional de Cristo e o acróstico, segundo Santo Agostinho, significa “Jesus Cristo Filho de Deus, Salvador” (9:8).

O monstro que atemoriza, morto, alimenta-os, e a docilidade da grande baleia que os guia até à ilha dos Pássaros são manifestações do poder divino.

Em diálogo com Judas, atado ao rochedo, exposto às intempéries do mar, sucumbido pela miséria moral, compadecido, chora o abade determinando aos demônios a prorrogação do descanso do traidor miserável. Agia em nome de Cristo. Consta que a vedação ao seu nome em sermões dos monges de Cister resultou dessa intercessão pelo alívio das penas de Judas (31:2).

As menções ao vento lembram o sopro divino do livro sagrado que determina, impele e retarda a marcha do barco. É o vento que o orienta em direção ao ocidente quando as representações do Paraíso colocavam-no no oriente. De novo o vento força o barco, a despeito do esforço em contrário dos monges remadores rumo a ilha dos Ferreiros, obrigados a conhecerem o inferno e seus demônios. Alusão ao espírito de Deus que insuflou pelas narinas vida no pó feito homem (Gen 2;5) e à palavra do evangelista João (Jo 3;5,18): “O vento sopra onde quer; ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai, assim é todo aquele que nasceu do espírito.”

A força desse relato resistiu aos séculos, repassado pela comunicação oral e, mais tarde, transmitido por escrito em latim e, posteriormente, em vernáculo. Como todas as narrações de viagens na Idade Média, um misto de fantasia e realidade ou realidades fantasiadas. Forte impressão causada pelo texto levou a tentativas de racionalização. Humboldt (46:29:37:5), decifrando passagens descritas pelo santo, especulou que ele houvesse navegado pelos mares do norte da Irlanda. O geógrafo identificou a ilha dos Carneiros como sendo as Faröe; a lha infernal como um vulcão na Islândia; o pálio de cristal, um iceberg; os demônios, que mataram dois companheiros de Brandão, ursos brancos; as nozes contendo leite açucarado, cocos, o que sugere que Brandão possa ter chegado até a latitude das Canárias e mesmo ultrapassado o Bojador (12:100).

Um aventureiro irlandês, Tim Severin, na década de 70, fez mais. Reproduziu um curragh, barco usado pelo abade e seus irmãos para repetir a mítica viagem. Tentava provar que os celtas chegaram a América, Terra Nova, muito antes de Colombo. Há indicações de que tal navegação seria tecnicamente possível no século V (29:37:2).

Indago agora a que atribuir o sucesso dessa história lembrada durante séculos? Tentemos uma explicação colhida em boas e variadas fontes.

A cultura da Idade Média estava dividida em duas, clerical e folclórica, como prefere Le Goff, ou erudita e popular. Uma, escrita, em latim, atinente aos mosteiros, própria dos clérigos, de uma elite; outra, oral, dominante nas camadas populares iletradas, incultas. Diferente, mas não uma degradação daquela. Para expandir-se o cristianismo necessitava atingir o público, sair dos claustros, ir ao encontro do povo. A diferença entre as duas era mais de grau que de natureza, segundo Franco Jr (22:14), sendo os eruditos biculturais, daí a influencia recíproca que experimentaram.

A estratégia da igreja foi apropriar-se da tradição pré-cristã adaptando-a aos seus valores para angariar adeptos. Intenção esboçada na carta do Papa Gregório ao abade Mellitus, datada de 601, transcrita no capitulo XXX do livro 1 da “História Ecclesiastica” de Beda: “Por que se os templos são bem construídos, é indispensável que se convertam do culto dos demônios para o culto ao verdadeiro Deus. (...) o qual adorarão naquele mesmo local, com o qual estão acostumados, e mais facilmente irão, por ser familiar. Para a mudança de destinação dos templos é necessário aspergir água benta, construir um altar e nele por relíquias. Quanto aos ritos, os bois sacrificados naquele local não mais devem ser sacrificados aos demônios mas utilizados para louvar a Deus e sua carne deve ser doada para saciar a fome daqueles que trazem a graça divina (18:5)”. Depreende-se dessa atitude a ponte feita pela igreja entre os dois mundos separados por uma fissão cultural. Versões escritas de viagens célticas pré-cristãs e da viagem de São Brandão só surgem no século X o que torna impossível saber quanto há de semelhança entre elas, se ocorreu predominância de um dos substratos (18:11).

Foi o processo de fusão das duas culturas que fez da viagem de São Brandão, na sua ambigüidade, um produto anfíbio (18:8) isto é que continha elementos clericais e eruditos. Era o bastante para tornar a narrativa inteligível e do agrado de todos, garantia de sua popularidade e permanência no tempo.

A Idade Média foi a idade da fé, o apogeu do cristianismo, mas também uma era de angústia, de temor e incerteza diante da morte e do que encontrar além dela. Daí a necessidade curiosa de conhecer o Paraíso encontrá-lo, já que existia, já que estava em algum lugar da terra. Para combater os bárbaros era preciso não só descrevê-lo, mas torná-lo visível.

Era imperioso achá-lo; inúmeras aventuras, reais ou imaginárias, com este fim foram relatadas e absorvidas pela cultura da época. A pergunta que não calava era: como seria e onde se localizava o Paraíso?

 

5 – Dos paraísos


A resposta viria segundo representações de visões místicas e relatos de viagens, como a de Brandão, que replicavam modelo obediente a um certo padrão.

Entre as visões que ajudaram a construir uma imagem do Paraíso, nos textos escritos e na iconografia, destacamos as de Perpétua (Paixão de Perpétua), do eremita Zózimo (Narrativa de Zózimo) (18-9) ambas do século III, e da grande mística Hildegard Von Bingen. A “Legenda Áurea”, de Jacopo da Varazze (1228 – 98), muito contribuiu para a idéia de que céu, purgatório e inferno eram provisoriamente acessíveis aos terrenos (6-2:94) e para a descrição do Paraíso segundo o guardião de São Pedro no ano em que instituiu a festa de “todos os santos”. Dentro do que se poderia chamar literatura visionária não esquecer o Paraíso de Dante. “Le Roman de La Rose”, livro escrito em duas partes, a primeira, na década de 1230 por Guillaume de Lorris, e a segunda, cerca de 1275, por Jean de Meung, tornou-se famoso e popular por descrever o Paraíso e como acessá-lo. Nele todos viviam felizes e em liberdade.

Entre as inúmeras representações pictóricas, merece citação o retábulo de Saint Bavon de Gand, obra de Jan Eyck (1432), considerado por Delumeau o mais belo painel da cristandade (15:23).

Não obstante a proliferação de imagens do Paraíso, a ênfase da igreja esteve orientada mais para o inferno (15:30). A salvação deixa de ser um objetivo coletivo para se transformar numa aspiração individual. O medo do inferno mais que o desejo do Paraíso motiva o cristão a agir para salvar-se.

Quanto às viagens, mencionamos Amaro e Trezenzonio (“A grande ilha do solsticio”) os quais, assim como nosso herói, se deslocaram ao Paraíso e voltaram para discorrer sobre as maravilhas que testemunharam.

As referências ao Paraíso no evangelho são sóbrias, sem riquezas de detalhes, registradas, sobretudo, em Lucas e Paulo (6-2:31). Mesmo o livro do Gênesis descreve o Éden de forma sucinta: “O Senhor Deus fez desabrochar da terra toda a espécie de árvores à vista de saborosos frutos para comer (...) um rio nascia do Éden e ia regar o jardim dividindo-se em quatro braços (...) o Senhor levou o homem e o colocou no meio do jardim do Éden para o cultivar e também para o guardar.”

Por aí se vê a diferença que há entre o reino dos céus que está na Bíblia e a exuberância em imagens e palavras das aparências subsequentes. Acréscimos feitos ao longo dos séculos por Judeus e clássicos latinos e gregos.

Tentamos identificar agora que elementos comuns informam essas diversas descrições do Paraíso narradas por viajantes sedentários e itinerantes.

Do ponto de vista do jesuíta Jeremias Drexel, autor de livros de sucesso no século XVII, e de muitos outros que abordaram o tema, o Paraíso era belíssimo, mas de difícil acesso (6:2:16). Situado em montanhas muito altas ou ilhas remotas, para atingi-lo fazia-se mister superar obstáculos e vencer barreiras surgidas no caminho do desconhecido. Os mapa-múndi medievais localizavam-no a oriente, identificado por símbolos que permitiam seu rápido reconhecimento. Brandão, sem realizar uma ruptura radical com esta tradição, deixa claro ter sido em sua expedição encaminhado para o ocidente. Na concepção da Idade Média não havia um, mas três Paraísos, o Terrestre, o Celeste, e a Jerusalém Celeste. O primeiro, referido desde o livro do Gênesis, marca para os cristãos, a partir de Adão e Eva, o início da história; o segundo, reservado aos mortos, habitado pelos espíritos, nunca descrito; o terceiro, uma incógnita a só se realizar quando da segunda vinda de Cristo para o julgamento final, o fim da história. A perda do Paraíso foi o primeiro mito, a sua reconquista a matriz das utopias (22-113). O pecado fechou a porta para o homem, o sacrifício de Cristo reabriu-a para os merecidos. Descrevê-lo, pelos que tivessem o privilégio de encontrá-lo, era sinal para os outros de sua existência e a esperança de que um dia o alcançariam.

Hilário Franco Jr. (22-121) considera que de forma geral o Paraíso da literatura possuía cinco características: natureza pródiga, saúde, harmonia, imortalidade, unidade. É com base nelas que a literatura edênica discorre sobre esse sítio de delícias encoberto por neblina e nevoeiro, mas devassado, revela sensações físicas agradáveis, grandes belezas, um maravilhoso bem estar. Clima ameno e estável, fontes, ar puro, rios, mel e leite, coros de anjos, árvores e frutos, luminosidade perene, pedras preciosas. Um ambiente feito de riqueza, fartura, abundância e plenitude, saciedade dos desejos. Limitada por um rio fica uma área interditada a qual só se tem acesso após a morte, o Paraíso Celeste. Para o mesmo autor a unidade com Deus seria o maior benefício que o homem gozava no Paraíso. A expulsão privou-o do contacto com Ele, impediu-o de “saborear a palavra de Deus” na expressão de São Gregório Magno (22:135). A unidade foi uma obsessão da cristandade ocidental, comprometida em intervalos da história. Daí imaginar-se em certos momentos que “a um só Deus deveria corresponder uma só língua, um só estado, uma só cultura, um só conjunto de leis, um só comportamento. Onde está a unidade está a perfeição”, ensinava São Bernardo.

Quanto ao Paraíso Terrestre, é importante lembrar que São Tomás de Aquino em sua “Suma Teologica” já afirmava que este possuía duas naturezas, “uma material, conforme o relato do Gênesis, e outra alegórica, ilustrando a virtude inicial do homem e o pecado da desobediência” (17:123). Embora a Idade Média aceitasse sua materialidade vozes discordantes na igreja preferiam fazer do Gênesis uma leitura alegórica. O próprio Santo Agostinho compartilhava desta leitura ainda que tenha afirmado ser a narrativa do Gênesis de “fatos reais” (17:37).

O período medieval visto como uma época de obscuridade e intolerância que acendeu a fogueira das perseguições religiosas experimentou na baixa Idade Média significativa evolução cultural, importante para o advento do Renascimento. Embora as Cruzadas constituam episódio relevante dessa etapa da história, ela se caracterizou por uma valorização e maior utilização da escrita com um emprego crescente do vernáculo e a expansão da atividade cultural laica. Data desse tempo a criação dos “studia generalia”, primeira denominação das universidades. A essa efervescência cultural que extrapolou os muros dos mosteiros, reduto da cultura erudita, clerical, Le Goff chamou de “reação folclórica” (17:11). Enquanto as histórias populares insistiam na descrição do Paraíso como algo concreto, a cultura erudita, mais racional, investia no etéreo, na sua imaterialidade. Então o átrio das igrejas era chamado de “parvis” (paraíso em francês), e os claustros buscavam reproduzir o ambiente de harmonia típico do Paraíso. O objetivo do “parvis” era transmitir a idéia de um campo de paz à espera da ressurreição, o novo Paraíso Terrestre, onde os justos estariam depois do julgamento final na Jerusalém Celeste simbolizada pela igreja (15:124).

A igreja, até então confinada nos mosteiros e abadias, foi sacudida pela ação de São Francisco, entre os séculos XII e XIII, que, em meio a um processo acelerado de urbanização, lançou a utopia da fraternidade. Em comunhão com os miseráveis, com os animais e com a natureza em completa harmonia buscava edenizar o mundo. Via em todos a presença divina, por isso os valorizava. Na convivência fraterna entre os homens e destes com a natureza residia o equilíbrio e a perfeição paradisíacas. Por imitar a vivência de Cristo foi chamado de alter Christus; por pregar a rearmonização do mundo era também o alter Adamus (22:129).

Lutero, o reformador, fundador do protestantismo, contribuiu para uma concepção mais abstrata do Paraíso, cada vez menos um lugar, mais uma disposição espiritual de cada um. São dele as palavras: “Se quiserdes conhecer reino de Deus, não há necessidade de que procureis muito longe, nem de que mudeis de país. Ele está perto de ti; e o que é mais, Ele não está apenas perto de ti, mas em ti”. Ou, ainda com ele, “Da mesma maneira que os filhos no corpo de sua mãe sabem pouco sobre seu nascimento, sabemos pouco da vida eterna” (6:2:405/406).

Swendenborg (1688-1772), filho de um bispo sueco, fez carreira como técnico e cientista, tendo mais tarde visões do além, que descreve em várias obras, é considerado o criador do céu moderno. É uma espécie de Paraíso em movimento. Isso se dá de duas maneiras: quando após a morte os defuntos chegam a um mundo espiritual, hora de decidir definitivamente entre a subida ao Paraíso e a descida ao inferno; aquele por sua vez, comporta de baixo para cima três níveis, o natural, o espiritual e o celeste, nos quais é possível ascender, numa dinâmica de purificação (15:468). Como no Paraíso de Dante há uma hierarquia de distribuição dos bem aventurados em patamares diversos, segundo cada um venha a merecer. Distante da imobilidade do céu medieval há uma constante atividade dentro de uma dinâmica espiritual de prestação de serviço que em muito difere da visão beatifica estática. Nova visão que vem coincidir com a descoberta do conceito de progresso pelo pensamento ocidental (15:468).

Santa Teresa de Lisieux não apenas se junta à corrente espiritual que defende intensa atividade no Paraíso, como substitui a expressão por céu. “Espero realmente não ficar inativa no céu, meu desejo é o de trabalhar ainda pelas almas”, disse poucas semanas antes de morrer (6:2:469).

Invoca-o sem descrevê-lo. Para ela é mais importante vivê-lo que sua visualização. “Eis meu céu (...) eis meu destino: viver de amor”, palavras que lembram o comedimento de Lutero e outros em relação aos textos e iconografias do Paraíso.

Na mesma linha de transição mental da concepção de Paraíso, Santa Brígida da Suécia, célebre mística, afirmava o caráter espiritual de suas revelações ao dizer que seus “olhos espirituais estavam abertos para ver” (15:92).

Ruysbroek, o admirável, contemporâneo de Santa Brígida, de grande influência na devoção moderna, foi mais radical ao reagir ao imaginário espiritual dessas visões. Assim se manifestava: “Ali onde acabam os céus corporais, ali também se detêm a imaginação e os sentidos exteriores; pois, quando não há mais matéria, não há nada a que se prendam os sentidos: nem Deus, nem os anjos, nem as almas podem ser apreendidas por eles, pois são sem figura. O “supremo sabor” está no “não saber e na perda eterna de si” (15:93).

Idas e vindas ao longo dos séculos acabaram por assinalar a vitória da palavra sem imagens sobre o paraíso imagético da tradição cristã, cada vez mais desacreditado em comparação com o primeiro. O fenômeno decorre segundo Jean Delumeau (6:2:470), entre outros fatores, da catequese comum às duas reformas religiosas; da sobriedade protestante e jansenista e, naturalmente, da nova astronomia.

As narrativas afetas à cultura folclórica, e os mapas, de origem erudita, pertencem a estratos culturais diferentes, não obstante, formam um conjunto onde se complementam para ajudar a entender um tempo marcado por grande religiosidade e crença na bíblia (17:136). Os mapas mostram a hierarquia do fiel, as narrativas ajudam a vivenciá-las (17:135). Urge, pois, não encerremos sem lançar um olhar sobre os mapas.

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