quinta-feira, 10 de julho de 2014

Breve notícia do primeiro livro impresso em linguagem



Breve notícia do primeiro livro impresso em linguagem
Lúcio Alcântara *
“Deus que julga as obras e a intenção de cada um, julgue as nossas, pois o juízo do homem está mais pronto a julgar a outrem que a si mesmo.”      
Apologia de João de Barros em lugar de prólogo
(Quarta Década da Ásia)

O mundo culto português foi surpreendido quando, em 25 de maio de 1965, o professor José Vicente Pina Martins publicou artigo no “Diário de Notícias” sobre a existência de um exemplar do Tratado de Confissom impresso em português na cidade de Chaves no ano de 1489. Descoberta esta devida ao livreiro Tarcísio Trindade, de Alcobaça, levada ao conhecimento do mestre que a estudou em artigos especializados vindo a publicá-la mais tarde em edição fac similar diplomática, de 1973, precedida de minuciosa introdução.
Achados como esse, comparável ao da Vita Christi por Jaime Cortesão em 1920, são raros em bibliografia, ainda mais que o cimélio encontrado nunca havia sido mencionado por quantos se debruçaram sobre a história da tipografia e do livro em Portugal. Até então A Vida de Cristo, de 1495, era tido como o primeiro livro em língua portuguesa, traduzido do latim, impresso na oficina de Valentim Fernandes e Nicolau da Saxonia. O aparecimento do incunábulo revolucionou os estudos sobre a origem e penetração da imprensa em Portugal ao abrir novas possibilidades de investigação. À luz dos conhecimentos atuais, os judeus são considerados os precursores da imprensa em terras lusitanas a partir do Pentateuco, Faro, 1487. Ao todo, segundo Cadafaz de Matos, somaram quinze os livros publicados em hebraico até a expulsão dos judeus em 1497. Até aqui não foi possível comprovar, como sugerem alguns estudiosos, a existência de prelos cristãos anteriores aos judaicos. O Pentateuco (1487) e o Tratado de Confissom seriam dois marcos a balizarem o nascimento da imprensa lusa e o surgimento de publicações em vernáculo. Controvérsias sobre a localização da primeira tipografia colocam Leiria, Guarda, Lisboa e, após a descoberta do Tratado de Confissom, Chaves, como hipotéticas sedes, mas, de certeza, a primazia ainda cabe a Faro, comprovada pela publicação do Pentateuco.
Ao proceder a um meticuloso exame dos aspectos editoriais e gráficos do Tratado de Confissom Pina Martins provocou uma revisão sobre os pródromos da imprensa portuguesa. A partir da conclusão a que chegou, passou-se a admitir uma quarta via para sua entrada no país, a espanhola, com eixo nas cidades de Zamora/Monterrey/Chaves, seguida pelos impressores anônimos do Sacramental e do Tratado de Confissom, antecedente das outras três já mapeadas (1). A saber:
- Barcelona/Braga, seguida por Johann Gherlinc.
- Augsburgo/Sevilha/Lisboa, seguida por Valentim Fernandes.
- Salamanca/Porto/Braga, correspondente ao itinerário de Rodrigo Álvares.
Possibilidade esta antes ignorada a despeito da proximidade entre os dois países e da presença da tipografia em Espanha desde 1472(1). Verdade que D. Manuel II, último rei de Portugal, notável bibliófilo, autor do magnífico catálogo, Livros antigos portugueses da biblioteca de sua majestade fidelíssima, já em 1929 estranhava “que catorze anos tivessem decorrido entre a introdução da arte de Gutenberg em Espanha por oficiais alemães e a sua entrada em Portugal pela mão de impressores hebreus”(4), estranheza só satisfeita em 1965 pelas páginas do incunábulo flaviense, exemplar único, achado fortuito em meio a um monte de livros velhos.
O “livrinho”, como o chamou carinhosamente Pina Martins, é um pequeno in-quarto, com trinta fólios e cinquenta e nove páginas impressas e um cólofon onde a lacuna é a omissão do nome do impressor. Para além do livro em si, da referência a Chaves como local da impressão, todo o resto se situa no terreno movediço das probabilidades amparadas por inferências obtidas a partir de apuradas pesquisas encetadas pelo reputado bibliólogo luso, removidas assim objeções dissimuladas à sua tese. Um manual destinado a orientar confessores e penitentes de certo teria boa acolhida entre os peregrinos de passagem por aquela vila nortenha em trânsito para Santiago de Compostela.
Por outro lado, os caracteres tipográficos empregados no Tratado, a disposição do texto em duas colunas, a filigrana do papel, uma mão direita coroada por uma corola de seis pétalas, uma identidade próxima entre as fórmulas do cólofon, aproximam-no das obras impressas por Antonio Centenera com oficina estabelecida em Zamora. A partir das analogias identificadas, foi possível supor que um impressor português tenha levado a cabo o trabalho com limitados recursos tipográficos preteridos por Centenera na vizinha cidade espanhola.
 Segundo Luis Felipe Barreto, citado no Catálogo dos Quinhentistas Portugueses da Biblioteca Nacional, a cultura discursiva do renascimento português resulta de três grandes dinamismos – o escolástico, o humanista, o da expansão dos descobrimentos. O predomínio cultural da escolástica se reflete no número expressivo de títulos editados no período sob a égide ou de mecenas ao seu serviço. Aliás, mesmo no período hebraico da tipografia portuguesa (1487 - 1497) apenas uma obra, o Almanach Perpetuum, de Abrãao Zacuto, um compêndio de astronomia, não tinha caráter religioso. Do total de 1.904 obras estampadas em Portugal no século XVI, seiscentas e cinquenta de uma, ou seja, 34% delas foram de responsabilidade da igreja (5). Em relação aos incunábulos portugueses, dos trinta conhecidos, dez inserem textos litúrgicos publicados com o apoio das autoridades eclesiásticas das três dioceses mais importantes, Braga, Lisboa e Porto (3).
Foi nesse ambiente de forte inspiração religiosa que surgiu o Tratado de Confissom, um guia para uso de confessores e penitentes, espécime de literatura moral, mais profundo que outros do gênero (6). O livro está dividido em duas partes, reservadas, a primeira, objetiva, ao confessor; a segunda, subjetiva, ao penitente, para facilitar seu exame de consciência, precedidas por um pródromo que alerta o juiz sobre suas obrigações e exorta-o a ser reto e justo. Um manual estruturado com apoio em exemplos, de forma a não falhar na revelação de pecados, e aplicação de penas segundo tabela canonicamente fixada. Enérgica reprimenda à corrupção da igreja e abusos dos eclesiásticos. Curioso que o livro  conclua com orações canônicas para as refeições, diferentemente dos congêneres, cujo costume das terminações era uma preparação para a morte. Como se, absolvido dos pecados pela confissão o penitente à mesa antecipasse a ceia do Senhor. A arte de viver e conviver substitui a arte de morrer (5).
O mérito do Tratado de Confissom, segundo Pina Martins, é bibliográfico, por haver antecipado em seis anos as primícias da tipografia lusitana. Nem seria de esperar maior valor literário em livro escrito com o fito de instruir práticas religiosas. Da autoria presumida de um eclesiástico, confessor e pregador, está vazado em um estilo seco, pobre de imagens, não obstante revestido da “beleza de uma arquitetura sem ornatos” (5). Vale ressaltar o léxico moderno com o emprego de palavras que sobrevivem até hoje.
Não é desprezível a título de documento que expõe a confissão como instrumento de controle social e revelador do comportamento do homem português no século XV.
A afirmação de Sousa Viterbo de que “em bibliografia é muito difícil, se não impossível, asseverar que se disse a última palavra sobre o assunto por muito verossímil que seja”, cautela esposada por outros especialistas, veio a ser confirmada a propósito da instituição do primeiro livro impresso em língua vernácula. Quando a prioridade indiscutível estava atribuída ao Tratado de Confissom, sustentada por fundados argumentos, eis que artigo assinado pela professora da Universidade de São Paulo, Rosemarie Erika Horch, confere o primado a uma tradução portuguesa do Sacramental, obra do espanhol Clemente Sanchez de Vercial, saída do prelo em Chaves, no ano de 1488(11). Conclusão esta retirada com base em investigação levada a efeito a partir de exemplar depositado na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro dada a conhecer em 1986. Segundo ela, após a publicação do Catálogo dos Incunábulos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (1957), surgiram comentários sobre a natureza incunabular da referida publicação, alimentada pela ausência no volume em estudo das folhas finais onde estariam as indicações tipográficas. Não obstante o óbice comprobatório, Serafim da Silva Neto, em 1957, com base em informação colhida no Dicionário Bibliográfico Português de Inocêncio Francisco da Silva, é taxativo ao considerar que ele “tem as características de incunábulo”. É que, no verbete, Clemente Sanchez de Vercial do aludido glossário, além das edições vernáculas do Sacramental, datadas de 1502 e 1539, está reproduzido um comentário imputado ao conselheiro Francisco Freire de Carvalho sobre ter visto na biblioteca do arcebispo de Lacedemônia e Vigário Geral do pratriarcado, D. Antonio José Ferreira de Sousa, outro exemplar do mesmo livro traduzido em português, impresso em 1488, que descreve em pormenor, anotada inclusive a falta da folha inicial. Ao tomar como ponto de partida a informação oferecida por Inocêncio, a pesquisadora localizou a obra do conselheiro Freire Carvalho, intitulada Primeiro Ensaio sobre a História Litteraria de Portugal, desde a Mais Remota Origem até o presente tempo, Seguido de Differentes Opusculos, Que Servem para sua Maior Illustração, e Offerecido aos Amadores da Litteratura Portuguesa em Todas as Nações. Lisboa, Typ. Rollandiana, 1845, 8º de 445 págs. a qual cita elementos constantes do Sacramental de 1488. Em seu texto reproduz o remate do livro onde vem em latim muito mutilado a indicação do impressor e de Chaves como sede tipográfica, dados despercebidos pelo autor da observação e o dicionarista. O cotejo feito entre o exemplar descrito por Freire Carvalho e o da Biblioteca Nacional faz crer se tratarem ambos da mesma edição restrita, a discordância às cores das letras capitulares. Sem embargo da exaustiva apuração empreendida, não foi possível identificar o tradutor nem afirmar com segurança o responsável pela impressão, possivelmente um espanhol fixado em uma das cidades próximas a Chaves. Embora a autora não tenha conseguido identificar os tipos do Sacramental com os de nenhum tipógrafo contemporâneo, há um vínculo de interesses topográficos com o Tratado de Confissom que emprestou insuspeitada notoriedade tipográfica à cidade. Mais que isso, segundo Artur Anselmo, pesquisador do assunto. Para ele, haveria entre as duas preciosidades afinidade temática e técnica que remete ambas a uma provável origem comum traduzida  no papel usado e nos tipos de Antonio Centenera. Por fim, um comentário sobre os dois exemplares mencionados. O da Biblioteca Nacional, com suas folhas iniciais completas, não pode ser o mesmo da descrição de Freire Carvalho onde estão dadas como ausentes.
Exemplares únicos, o Tratado de Confissom e o Sacramental são remanescentes do vandalismo dos homens e da ação destruidora do tempo para testemunharem o princípio e a evolução da imprensa, essa formidável invenção da Renascença difundida pelo protagonismo português na descoberta de novos mundos, malgrado sua interdição no Brasil até a transferência da Corte em 1808.
Após esta breve incursão pelo alvorecer da imprensa em Portugal, cumpre elaborar uma cronologia de livros publicados à época, segundo coligi de fontes diversas assentadas em constatações comprovadas.
De acordo com Artur Anselmo(3) todos os impressores que trabalharam em Portugal com caracteres de matriz gótica, do início da atividade tipográfica até o final do século XV, estão distribuídos por três ramos:

a) ramo comum a impressores do Sacramental e Tratado de Confissom.
b) ramo comum a Johann Gherlinc e Rodrigo Alvares.
c) ramo comum a Valentim Fernandes e Nicolau de Saxonia.

Quanto aos livros publicados, esbocei uma síntese cronológica que contempla em sua estrutura as mudanças ocorridas desde quando Queirós Veloso considerou, no volume I da Bibliografia Geral Portuguesa a Vita Christi “como a primeira obra impressa entre nós em linguagem” (6).
Ordenados a seguir, os livros listados auxiliam a melhor compreender a sequência de publicações surgidas na fase pioneira da imprensa em Portugal:

1487 – Pentateuco – Primeiro livro publicado em Portugal em hebraico (Faro, Samuel Gacon).
1488 – Sacramental – Tradução portuguesa do texto de Clemente Sanchez de Vercial (Chaves, impressor ignorado).
1489 – Tratado de Confissom – Primeiro livro impresso escrito em português (Chaves, impressor ignorado).
1494 – Breviarium Bracharense – Primeiro livro publicado em latim em Portugal (Braga, João Gherlinc).
1495 – Vita Christi – Obra prima da bibliografia portuguesa traduzida do latim. (Lisboa, Valentim Fernandes e Nicolau da Saxonia).
1497 – Constituições que fez o senhor Dom Diogo de Sousa Bispo do Porto – Primeiro livro que teria sido impresso por um português. (Porto, Rodrigo Álvares).

Sem a pretensão de esgotar a lista de incunábulos portugueses, relacionamos os vinculados a eventos marcantes na bibliografia lusitana na esperança de que o presente texto colabore com quantos se aventurem na senda dessa fascinante aventura.

Bibliografia

01- ANSELMO, Artur. Estudos de história do livro. Lisboa: Guimarães, 1997.    189p.
02- _____________. Livros e mentalidades. Lisboa: Guimarâes, 2002. 191p.
03- _____________. Origens da imprensa em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1981. 510 p.
04- D. Manuel II. Livros antigos portugueses 1489 - 1600 da bibliotheca de sua majestade fidelíssima. Braga: APPACDM, 1995. 633 p. v.1.
05- HUE, Sheila Moura (Org.); PINHEIRO, Ana Virginia (Org.). Catálogo dos quinhentistas portugueses da Biblioteca Nacional. 2. ed. Rio de Janeiro: Edições Biblioteca Nacional, 2004. 157p.
06- MARTINS, José V. de Pina. Tratado de confissom: (Chaves, 8 de agosto de 1489). Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1973. 281p.
07- MATOS, Manuel Cadafaz de. O Primeiro livro impresso em Portugal. Jornal de Letras, [S.l.], 12 jul. 1987.
08- PACHECO, José. A Divina arte negra e o livro português: (séculos XV e XVI). Lisboa: Vega. 282p. (Coleção Artes / História).
09- PEIXOTO, Jorge. História do livro impresso em Portugal. Coimbra, 1967. 30p.
10- PINTO, Américo Cortez. Da famosa arte da imprimissão. Lisboa: Ulisseia Limitada, 1948. 507 p.
11- PRELO. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, n. 10, jan./fev. 1986. Trimestral.
12- SILVA, Innocêncio Francisco da. Diccionário bibliográfico portuguez. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859.478p. t.2.