quinta-feira, 10 de abril de 2008

A verdade da metáfora

A apresentação de livros em sessões públicas compõe o ritual de lançamento de novas obras. É hábito já integrado aos nossos costumes literários. Não fora isso, seria dispensável, ainda mais quando se trata de autor consagrado, tal Carlos Augusto Viana, autor de vários livros (“Primavera empalhada”, “Inscrição dos lábios”, “A báscula do desejo”, todos de poesia, e o ensaio, “Drummond, a insone arquitetura”, sua tese de mestrado) e é dono de vasta fortuna crítica. “Côdeas”, com o qual venceu o Prêmio Unifor de Literatura é a reafirmação de um talento poético que se refina com o tempo e não carece de apresentação. Convidado pelo escritor para apresentar sua laureada produção, aceitei o encargo honrado pela escolha, mas sobretudo por haver gostado do livro. Resta-me procurar traduzir bem esse gosto pessoal. Isto é, dizer porque gostei.

Poesia é sentimento, emoção. Mesmo quando abstrata como em grande medida o é a de Carlos Augusto Viana. Atributo assinalado com justeza por Paulo de Tarso Pardal na introdução do livro. É certo que o crítico detecta também na obra poemas com manifestações confessionais, e outros nos quais a descrição das coisas os torna mais próximos do real. De todo modo, há um predomínio do hermetismo, tendência visível na evolução da produção poética do autor. Ainda assim, não tenho como comentar sua poesia, para cumprir minha missão, a não ser com emoção, esse ingrediente essencial do fazer poético. Ferreira Gullar, falando sobre a racionalidade na poesia, tão defendida por João Cabral de Melo Neto, disciplinador de emoções, conclue que mesmo o pernambucano, se escapou delas na elaboração do poema, não as escondeu no texto final. Adianta que “Cão sem plumas”, e sobretudo “Morte e vida Severina”, confirmam essa impressão. O duelo emoção/razão, administrado com competência, resulta numa poesia bela e densa ao mesmo tempo. Creio ser o caso do poeta Carlos Augusto. Reservo aos doutos o método, e a linguagem dos especialistas, que considero tentativas de tecnificação dos sentimentos, elaboração científica da literatura. Se nem a poesia dos racionalistas se desvencilha das emoções, não tenho porque escoima-la da minha crítica, feita de sensações que captei.

O livro está dividido em duas partes. Na primeira, a mais extensa, em versos soltos, e alguns sonetos, o poeta escava na memória imagens recorrentes do pai, da casa, do mar, dos navios, em um cenário rural evocado com sintética elegância, característica de sua poesia: “só o mar permanece (e bem o desejaste) diante de ti (Meu pai); “meu pai havia cadernos” (Itinerário das sombras); “meu pai com seu terno de areia, / percorre todos os mitos do mar” (O caminheiro); “A casa já não mais vadeia as espumas da tarde” (Notícias); “Caminho, assim, por estrada nenhuma, e suspiro algum não vem daquela casa” (Sub tegmine fagi); “Reergo a casa / as vértebras da solidão” (A Casa); “E o mar alteia a espinha de suas espumas” (Degraus); “A noite se contorce, e o mar se inflama./ As ruas são navios; e os ventos, rotas. (Soneto com folhas e navios); “A casa é um navio, e assim navega /nas águas insepultas do verão (Soneto com canários e alpendres). Está aí pequena amostra da recorrência temática em sugestivas imagens. A economia de vocábulos não prejudica a percepção da idéia, mas aguça a imaginação do leitor, levado a se aproximar do texto pela subjetividade das sensações induzidas pelo ritmo das palavras.

É o livro da angústia, da dor, do silêncio (“O silêncio maduro inclina as horas, / cujo pêndulo se cobre de espumas.” (“Soneto com silêncio e sal”).

A segunda parte, “Cantares”, tecida com os fios da paixão, dedica à Laéria. O ambiente agora é urbano. Ao poeta não basta amar, é preciso proclamar o seu amor. A cidade admira sua musa, “A cidade se contorce à tua passagem / janelas e portas se abrem a teus pés”, a quem convida repetidas vezes, enunciando o bordão – “És formosa amiga minha, vem ...” sob auspícios delicadamente sensuais, “e como arde o rio que corre em tua língua... Entrega teus olhos aos azuis, para que teu corpo em chamas, se cubra desses lençóis que a noite estende sobre os escombros”, numa atmosfera levantina onde não faltam os cedros, incenso, mirra, aloés, o Líbano, atávicas referências amorosas. É o livro de Eros.

Se côdea é a casca rija da madeira, ou do pão de cada dia, como ensinam os dicionários, deparamo-nos já no título do livro com a primeira de muitas metáforas. Pois o que faz, é remover revestimento e camadas para extrair sofridamente dos armazéns da memória, recolhidos na intimidade da alma, a matéria que reconcilia seu espírito, “cimitarra do vento a triturar as côdeas da memória”, expressão do poeta em “Itinerário da sombra”. A dor, insumo das recordações, mesmo das felizes, alimenta o fluxo criador, espontâneo, que confere ao autor a autenticidade a que se refere Vargas Llosa em seu livro “Cartas a um jovem escritor”. Ainda quando prepondere o abstracionismo que oculta o real em imagens sofisticadas. Na verdade, a linguagem elíptica do poeta, tecida de metáforas estranhas e belas (“o barro do vazio”; “grãos do mar” (qualquer um diria gotas); “singra os cílios da solidão”; “grãos dos cílios”; “o alfabeto aceso das jangadas”; “pétalas de vinho”; “os mortos espantam borboletas com seu chapéu de areia”; “nesta terra sem cartilha”, indiferentes ao real, convida o leitor, sob o acorde melodioso das palavras, a que se refere Maria Beatriz Alcântara na orelha do livro, a completar imagens insinuadas com talentosa criatividade. É a palavra trabalhada com precisão semântica, força sugestiva, e a potencialidade da comoção. Percebe-se na obra do poeta o esforço, bem sucedido, de domar a corrente criadora que emerge da memória que não morre, e reata convívios interditos. Sob o fogo “dos gravetos do remorso”, empenha-se em conter palavras que no dizer dele se apoderam do poema (“navio, por exemplo, é uma dessas” em “Navio”), semeadas em remotas estufas, independem dos olhos e das mãos. Acontece como disse José Lins do Rego a propósito do alagoano Jorge de Lima, “o poema entra dentro do poeta e o domina, ou ele escreve ou perde o poema”.

O diálogo que trava com a folha em branco é a elegia da palavra, “pira, pátina, pórtico” (em “Anotações a lápis”), arquitetura do poema, feita de texturas diversas e às vezes do nome do silêncio. “Idéias e imagens ajustam-se ora no ritmo métrico, ora no ritmo psicológico” conforme comentou Linhares Filho em estudo sobre o autor. Prova disso é a destreza com que maneja verso livre e soneto, sem que a rima aprisione o vigor da palavra empalidecendo a força das imagens. A forma não constrange a criação. A poesia de Carlos Augusto, sem descartar o lirismo imanente a essa linguagem, é desidratada, lipoaspirada. Dispensa os atavios barrocos para se expressar numa beleza máscula e singular, feita de ossos e músculos. Ossos, são palavras dispostas num arranjo que suporta os músculos, metáforas comprometidas só com o mistério contido na harmonia dos vocábulos. A sensação que tenho ao ler os poemas é que o primado da palavra, indiscutível, não suprime a emoção nem envereda por uma criação cerebral, fria, que abafe a essência estética do verso ou anule seu conteúdo misterioso. A metáfora é o cerne da poesia, ensinou Neruda ao carteiro aprendiz de poeta junto ao jardim de sua casa à beira-mar.

Vargas Llosa, no livro a que me referi antes, afirma que o romance é uma fraude, uma mentira que parece verdade. A poesia, exceção das epopéias e do cordel, no geral não tem trama explícita, mas possui metáforas sensíveis, que ao contrário, são verdades que sugerem mentiras, por serem irreais ao exame objetivo das coisas. Essas metáforas são construções poéticas, e não meras analogias elegantes, que valorizam as dissemelhanças, e produzem tensão e interação de sentidos diferentes desprezando a similitude empírica. Alicerçam-se sobre a vontade da imaginação (“La terra est bleue comme une orange”, Paul Éluard). Operam para redescrever realidades e não para descobrir semelhanças, como ensina Paul Ricoeur.

Esses são os conceitos anotados por Clara Crabbe Rocha em ensaio constante na obra “Medicina e outras artes”. Ao adotá-los Carlos Augusto palmilha caminho hermético que instiga o leitor a interagir com a obra através da porta entreaberta da imaginação. Otávio Paz já disse que “a poesia não compara, não indica semelhanças, mas revela, mais ainda, provoca a identidade última de objetos que nos parecem irredutíveis”. Essa é a verdade da metáfora. Aí reside a dose de mistério que encanta e seduz, na riqueza das imagens e na harmonia das palavras que embalam o devaneio do leitor. Mistério, que como diz Garcia Lorca “está em todas as coisas, e a poesia é o mistério que todas as coisas têm”. Não por acaso o carteiro iniciado deixou perplexo o poeta ao indagar-lhe: “o senhor acha que todo o mundo, quero dizer todo o mundo, com o vento, os mares, as árvores, o fogo, os animais, as casas, desertos, as chuvas... o senhor acha que o mundo inteiro é a metáfora de alguma coisa? E o homem, acrescento eu, essa metáfora ambulante do inconsciente indecifrado. O mundo como uma formidável metáfora, esta é a matéria prima do nosso poeta. Com ela desenha o esboço dos enigmas que cada um decifre.

Chama-me atenção na obra de Carlos Augusto o rigor com que usa as palavras. Lembra a obsessão de Flaubert na busca da palavra exata, única capaz de expressar uma idéia, “le mot juste”, que perseguia com tenacidade admirável. Submetia todos seus textos à leitura em voz alta caminhando sob uma alameda de tílias (a “allée des gueulades” – a alameda da gritaria) para testar definitivamente a harmonia entre forma e conteúdo. O processo, peripatético ou não, serve igualmente à poesia, penso que até mais que à prosa. Ela é boa, se resiste ao derradeiro teste da leitura em voz alta. É o que vou fazer agora, submetendo a criação do poeta ao público, a despeito de notória deficiência vocal que empresta mais valor ao produto final.

O Caminheiro

Meu pai, com seu terno de areia,
percorre todos os minutos do mar.
Ainda bem, pois sempre amou os navios.
Um dia,-
desses que se desprendem dos calendários -
ele me falou que certas espumas
cultivam sílabas tão frágeis
que, aos lábios do vento,
perdem-se de nós,
ainda que nos deixem impregnados
do rastro de seu perfume.
A morte sabe a essas composições.


Que tal? Por mim, aprovo com louvor poema e poeta.

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