quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

O Alienista - Uma Metáfora do Poder

Deus me livre de falar apenas
a linguagem do bom senso:
no bem como no mal
convêm ser-se um pouco louco.


George Bernanos, em “Sob o Sol de Satã”.


Machado de Assis é, inegável, estrela de brilho singular no firmamento da literatura brasileira. Escreveu romances, contos, crônicas, poesias e peças para o teatro. Fez crítica literária, e militou na imprensa, com intensa participação em jornais e revistas publicados no Rio de Janeiro. Foi um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras que presidiu, e liderou por largos anos, ao ponto de tornar-se referência obrigatória sempre que se menciona aquela instituição. Alguns de seus romances e contos se tornaram cânones literários tendo mais tarde sua obra, traduzida em outras línguas, alcançado merecido reconhecimento no exterior.

A consagração do autor não demoraria, viria ainda em vida. Aos sessenta anos, já publicados “Quincas Borba” e “Dom Casmurro” era, segundo Mário Matos, um de seus biógrafos, “considerado pelos melhores espíritos o chefe, a figura de centro da literatura nacional”. Na mesma linha, comentadores contemporâneos, como Daniel Piza e Flávio Moreira da Costa, tem-no como o pai da prosa brasileira, e o melhor, e mais revolucionário dos nossos romancistas, respectivamente. Revolucionário por ter introduzido estilo novo, muito próprio, com características modernas, que o colocavam a frente dos românticos, dos realistas e naturalistas. A posteridade confirmou e ampliou sua fama atraindo até hoje inúmeros estudiosos de sua obra, no Brasil e outros países.

De origem humilde, órfão de mãe aos cinco anos, mestiço, gago, autodidata, epiléptico, ascendeu ao panteão da glória graças à sua persistência e continuado esforço. Os percalços da vida e a moléstia moldaram um temperamento enigmático, esquivo, arredio, introvertido, desconfiado. Avesso à manifestações públicas e aos excessos de gestos e linguagem preservou sua intimidade mantendo com os colegas relações no plano intelectual, salvo exceções, como as de Mário de Alencar, Magalhães de Azeredo, José Veríssimo e Joaquim Nabuco, com os quais conviveu próximo. Se nunca entregou sua alma projetou-a em sua obra onde se identificam traços de sua personalidade e manifestações da doença que o acometia nos perfis humanos que desenhou e nas tramas que teceu em seus romances e contos. Luis Garcia, o funcionário público taciturno, absorvido no trabalho, metódico e silencioso que está em “Yayá Garcia” tem a sua conformação. Os interessados que se debruçam sobre o autor e sua obra reconhecem em maior ou menor escala a projeção do caráter e do sofrimento físico de Machado em seus personagens, que de modo geral refletem modelos psicológicos a braços com os demônios da alma de que cuidou magistral. Estudos patográficos aplicados a escritores, e investigações psicológicas e psicopatológicas voltados para os personagens, têm rendido apreciável contribuição ao conhecimento do processo criativo desses ficcionistas. Desbravou esse campo Jaspers, com os estudos sobre Nietzsche , Hölderlin e Van Gogh, precedido por Moebiu que analisou Goethe, e entre nós, Leme Lopes, autor de “A Psiquiatria de Machado de Assis”.

Arredio, Machado evitava a polêmica, postura que recomendou em crônica à sua pena, bem como mantinha-se distante das discussões sobre temas que empolgavam opiniões, a abolição e a república. Julgava convir ao funcionário público, zeloso e cumpridor de ordens, manter-se distante de tais assuntos.

Portador de epilepsia, afligia-o o temor às crises convulsivas e às ausências, que chamava de “umas coisas esquisitas”. Nunca mencionava o nome da moléstia e a ela só se referiu em cartas trocadas com Mário de Alencar e Magalhães de Azeredo. Suprimiu menção à enfermidade ao traduzir do francês o livro “Notions d’Hygiene à l’usage dês Instituteurs”, de T. Gallard e eliminou na segunda edição de “Memórias Póstumas de Brás Cubas” o vocábulo epilepsia como causa da convulsão de Virgilia. Nisso diferia de Dostoievsky que alem de não esconder a enfermidade dizia maravilhas das auras e elegia heróis epilépticos como os que figuram em “O Idiota” e “Os Possessos”.

Não obstante o pudor em relação à moléstia, Machado de Assis descreveu cenas que lembram o quadro clinico da epilepsia. A perda de consciência de Rubião, ao assistir o enforcamento de um negro, o conto “Um Cão de Lata ao Rabo” e o poema “Suave Mari Magno” são exemplos da transferência de uma vivência enferma para a ficção.

O delírio de Rubião está entre as páginas antológicas da literatura ao tempo que reproduz com fidelidade um quadro mental identificado pela psiquiatria. Face a exatidão da descrição Leme Lopes afirma que Machado aplicou o método fenomenológico antes de Jasper, seu criador. Levado ao extremo, no caso de Rubião, em que “nenhum objeto pode ser mais próximo do fenomenologista que o próprio eu. Sujeito e objeto se unem e são um só fenômeno”. A criatividade de Machado por si só não seria bastante para relatar o delírio a não ser a partir de uma experiência pessoal. Leme Lopes admite então que o autor poderia ter vivido algo semelhante, como um estado oniroide, próprio da epilepsia temporal. Algo descrito como “dream state” de Jackson, e manifestações onírico confusionais nos intervalos das ausências e das crises do grande mal.

Machado viveu na fronteira da loucura, que tanto temia. Movido por esse pavor construiu uma grande obra ao esquadrinhar a alma humana, dissecá-la, pescar em suas profundezas os gigantes que a animam incorporados nos personagens que criou.

José de Alencar foi cognominado o fundador do romance brasileiro por haver rompido com o estilo literário à época praticado em Portugal e no Brasil. Alencar, ao escrever uma prosa carregada de poesia cantou as belezas da natureza, o nacionalismo, e cultivou um indianismo romântico. Machado, que também inovou, ao contrário de Alencar disse desprezar a paisagem para se concentrar no homem. Toda sua obra cheia de ambigüidade, dedicou-a à sondagem da alma, a esmiuçá-la, desvelar o que as aparências encobrem, expor as fraquezas do homem. Terá sido um dos escritores que escreveu sob maior influência do mal de que padecia e das dificuldades que enfrentou em razão de sua origem. Tímido, recatado, só deixou, segundo Lúcia Miguel Pereira uma porta aberta para que o conhecêssemos: seus livros. De fato há neles, nos personagens que criou, muito de si, de seus traumas, frustrações, fobias, hesitações, temores e idiossincrasias que marcaram fortemente seu estilo. O pessimismo irônico, que cultivou até o fim, a descrença no ser humano; “perdera toda ilusão nos homens”, revelou desencantado em carta à Mário de Alencar. Faltava-lhe “a fé nas ilusões necessárias” (Mário Matos). Cético, semeou a dúvida, instilada com maestria no espírito do leitor ao se deparar com a dualidade conflituosa dos tipos por ele criado. Evitava julgar abertamente deixando a decisão ao leitor inteligente. Ao olhar do autor soma-se o do leitor. Introduzia assim no nosso panorama literário o romance psicológico, intelectual, onde a última palavra ficava com quem o lia. Machado, avesso à controvérsia, inoculava-a em seus heróis, no caráter deles, no comportamento de cada um, ficando o desfecho em suspenso, sobretudo nos chamados contos abertos. O que teria se passado na verdade no colóquio, havido na noite de Natal em “A Missa do Galo”? Quem desfaz a dúvida sobre a infidelidade de Capitu? Ou sobre a insinuação da homossexualidade de Bentinho? O problema da vida, o questionamento às leis da conveniência social, foram sua constante preocupação, trabalhada com um estilo polido, límpido, de meias tintas, do talvez, das entrelinhas assentado na dúvida, “que encanta, mas não emociona”. Machado não era isso, ou aquilo, mas isso ou aquilo, ou, visto pelo avesso, como o comprazia fazer, nem isso, nem aquilo. Cultivava a “ética da hesitação”. (Marta de Senna), tinha dificuldade em afirmar. Sugeria, insinuava, levantava o véu da suspeita para em seguida argumentar em contrário desorientando o leitor. Esse “homem subterrâneo”, na expressão de Augusto Meyer, escafandrista do mundo interior das pessoas, homem do seu quarteirão, como ele próprio se definiu, “que observava, ouvia e escrevia”, fascinado pela análise, produziu sob forte influência de suas condições sociais e orgânicas (Alfredo Pujol) e das leituras que fez. Sem depender ou imitar, recebeu subsídios ingleses, de Sterne, Swift e Shakespeare, os quais contribuíram para moldar seu estilo impregnado de sátira, ironia e humor, o chiste grave da crítica. Apreciou Montaigne, Stendhal, Voltaire, e leu Schopenhauer até perto de morrer.

Por hábito, detinha-se em longas conversas com José de Alencar no Passeio Público. Era, no dizer de Mário Matos, “o diálogo da dúvida que adverte com a imaginação que afirma”. Pesquisador dos instintos, procede a uma devassa das almas, pulveriza certezas; sem o saber foi profundo,psicanalista, comenta Américo Valério, autor de “A Psicanálise de Machado de Assis”, a quem denominou de avô de Freud. A arte precedeu a teoria, a literatura antecipou a ciência.

Entre os temas que explorou estão o ciúme, a avareza, a infidelidade, a dúvida, o negativismo, a obsessão do nada, o relativismo, a loucura. Assuntos que se repetem ao longo da obra, até em circunstâncias idênticas, características que certos críticos apontaram como sinal de pobreza criadora.

A fascinação dele pela loucura merece um comentário, antes de nos determos sobre “O Alienista”, parte desse painel machadiano da insânia.

A loucura calhou como forma obliqua de exercitar a crítica, extravasar seu pessimismo e fustigar, em linguagem comedida, condutas morais vigentes na sociedade. Vingava-se das partidas que a vida lhe pregara no plano social e físico transferindo padecimentos que o torturavam para as figuras que veio a criar nos seus contos e romances. Usou a arte, para, ao retratar a vida, deformá-la. Para tanto aproveitou sua experiência pessoal intima, leituras que realizou e ocorrências do cotidiano.

A consulta ao acervo da biblioteca de Machado de Assis recolhida desfalcada, à Academia Brasileira de Letras, decepciona quanto à existência de títulos relacionados ao assunto. Não passam de seis, sendo um deles “Les Maladies de la Memóire” de T.H Ribot, 1881, que pode ter inspirado o conto “O Lapso”, um exemplo de amnésia seletiva. É impossível afirmar que não tenha possuído outros livros extraviados ou se informado sobre a matéria na livraria do Real Gabinete Português onde foi assíduo. Leme Lopes admite que tenha lido psiquiatras, sobretudo franceses. Indiscutível que tenha tomado conhecimento, além de outros gêneros do trabalho do médico e jornalista José Francisco Sigaud, intitulado “Reflexões a cerca do transito livre dos doidos pelas ruas da cidade do Rio de Janeiro”, publicado no “Diário de saúde ou efemérides das ciências médicas e naturais do Brasil” em 15 de Abril de 1835 o qual trouxe conceitos que o romancista ao seu modo replicaria em “O Alienista”.

Sem caráter técnico, vale anotar obras de Poe e Swift, que integravam sua biblioteca e tiveram reconhecida influência sobre ele, na forma e no conteúdo. O conto de Poe, “O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena” e “A Tale of a Tube Written for the Universal Improvement” e “A Serious and Useful Scheme to Make an Hospital for Incurables”, são identificados como fontes de que se serviu Machado para elaborar o texto satírico, jocoso e grave, de “O Alienista”.

Quanto aos fatos relacionados aos loucos inscrevem-se com freqüência em suas crônicas, merecendo destaque as de 2 de Dezembro de 1894 na qual, irônico, propõe auto-gestão do Hospício de Pedro II, e de 31 de Maio 1896 que trata da fuga de doidos do mesmo asilo.

A obra de Machado de Assis está claramente dividida em duas fases, na primeira, o autor manteve-se dentro da tradição romântica tendo os livros do período importância menor no conjunto de sua produção. Já no segundo momento, marcado pela morte de Carolina, sua mulher, e maior freqüência das crises epilépticas, liberta-se o gênio e escreve o quinteto: “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Dom Casmurro”, “Quincas Borba”, “Esaú e Jacó” e “Memorial de Aires”. Imortalizaram-no os três primeiros da série. Ao se examinar o tratamento dado por ele à loucura distingue-se com nitidez duas etapas . No início ela é apresentada de forma sutil, perceptível sem ostensividade, como convinha, a um homem da ordem, assentado. Mais tarde escancara a loucura, deixa de “bordeja-la para lançar-se à cova das serpentes” (Leme Lopes). È o novo Machado, que abandona caminhos batidos, para versar a insânia de “Quincas Borba” e Rubião e elevar-se entre todos manejando a loucura como instrumento de crítica social impiedosa.

Os loucos de Machado, que abominava a violência, apenas no conto “A Cartomante” há homicídio no desfecho, são mansos, raciocinam, criam sistemas filosóficos (Leme Lopes). Atingem primeiro a glória para em seguida conhecerem a decadência. Os laivos de loucura levam ao extermínio da razão.

Quem são esses doidos, declarados ou embuçados que integram essa estranha galeria? Sem esgotar as amostras mencionemos alguns deles:

O Fortunato, de “A Causa Secreta”, sádico, com discreta menção ao componente sexual; o Nicolau, de “A Verba Testamentária”, epiléptico indiscutível; Procópio, de “O Enfermeiro”, precursor da síndrome de “burn out” (J.Freudenberg, 1974), exaustão e desinteresse crescente experimentados por profissionais que cuidam de pessoas no seu dia-dia.

O Tomé Gonçalves, de “O Lapso”, amnésico seletivo, esquecido de débitos, sofreria de emporioagnosia (neologismo proposto por Daniel Martins de Barros), curado segundo o método cognitivo comportamental do médico holandês Jeremias Halma. Cumpre anotar a diferença terapêutica, enquanto Bacamarte segregava, Halma integrava.

O alferes Jacobina, de “O Espelho”, é esquizofrênico de duas almas, uma interna, outra externa, ou portador da síndrome de Ganser.

José Maria é o louco ressuscitado de “A Segunda Vida”, ensandecido da experiência feita de homens e coisas, de tudo desconfiado. O Senhor F., de “Três Tesouros Perdidos”, é o louco varrido que nasceu após perder uma mulher sem igual, um amigo à toda prova e uma carteira cheia de notas. Na verdade “o amigo” era comborço, e a mulher, adúltera. Só as notas eram autênticas.

A atração de Machado pela loucura ilustra os livros que foram o ápice do seu sucesso. Neles a doença psíquica domina o cenário. Bentinho, de “Dom Casmurro”, tem a predisposição que evolue para um estado paranoide, a “paranóia de ciúme” dos franceses, o “delírio de ciúme”, de Jaspers. È a opinião de Leme Lopes.

Já Brás Cubas, seria para Antonio Austregésilo, personalidade psicopatológica com o rótulo de “paranóia inventoria” (Kraft e Ebing) incluída por Kraepelin entre as parafrenias, devido sua fixação na descoberta de um emplastro miraculoso. O brilho do personagem está no delírio auto-descrito, a sombra de Machado; uma jóia literária, uma perfeição clínica. Manifestação agônica sob a forma de psicose aguda exógena, desencadeada por uma pneumonia. (Leme Lopes). È o sonho acordado, reservado aos que podem; a morte que cada indivíduo constrói para si.

Quanto à “Quincas Borba”, Leme Lopes em “A Psiquiatria de Machado de Assis,” aqui referido outras vezes, considera fácil taxá-lo de esquizofrênico. Pondera contudo que o quadro psiquiátrico terminal não guarde relação com a desordem psíquica básica. Opta por etiquetar o lunático filósofo como “uma personalidade anormal que vem a formar um desenvolvimento paranóico”.

Rubião, é uma síntese semiológica dinâmica, a história natural em prosa impressa da paralisia geral de natureza luética. Machado detem-se na evolução da doença de um homem com espantosa minudencia. A forma bem humorada como tratava o fenômeno da loucura para desmistifica-la dá lugar à verdade trágica da demência. Afecção comum à época do romance chegava a acometer cerca de 13% dos pacientes internados no Hospício de Pedro II. As manifestações alucinatórias descritas são raras, mas não estranhas a doença. Ao diagnóstico nosográfico de paralisia Leme Lopes associa uma suma psicopatológica que descreve como personalidade psicastênica que atinge demência com delírio de grandeza. A nomenclatura psiquiátrica, que acompanha a moda e a evolução da ciência não é o que mais interessa agora; importa sim reconhecer a atenção dada pelo autor à doença mental.

“O Alienista” é, segundo Augusto Meyer, sua “sátira mais feroz”, ou no dizer de Mário Matos, “a maior ironia já feita às convicções científicas”. Uma paródia psiquiátrica à presunção da ciência.

A narrativa está entre as melhores do autor e pode ser considerada uma novela, por sua extensão, e pela existência, não obstante a loucura ocupe seu centro, de estórias paralelas. Simão Bacamarte, o alienista alienado, autodiagnosticado, parece saído de um quadro de Bosch pintado em prosa por Machado sobre a tela de Itaguaí.

Afinal, qual é o enredo, desse conto, ou novela, indefinição estilística de um cultor da dúvida, tido por monumento crítico ao dogmatismo da ciênca? Tentemos uma síntese.

Tudo começa quando um narrador externo evoca a crônica da vila de Itaguaí para contar de um médico que ali aporta, aprendido em Pádua e Coimbra, e se torna possuído do ideal de cuidar da saúde da alma, “a mais digna das ocupações do verdadeiro médico”. Deu-se assim à tarefa hercúlea de pesquisar “o recanto psíquico, a patologia cerebral, a loucura enfim, descobrir-lhe a causa e o remédio universal”. Estava instituída no país a única autoridade competente para tratar de coisa tão delicada. Com o apoio da Câmara fez construir imponente edifício, a Casa Verde, para abrigar e tratar os dementes abandonados pelo poder público, livres nas ruas ou trancafiados nas alcovas.

Absorvido na tarefa, feita de apurado estudo, enfrentaria, obstinado, os grandes óbices e vicissitudes que o aguardavam. De toda parte afluíam doidos, logo classificados, e em seguida internados. Mansos e furiosos, loucos por amor, maníacos de grandeza e até orador compulsivo de discursos acadêmicos. Era uma fauna que só crescia em quantidade e diversidade. Para melhor cumprir seu programa desobriga-se Bacamarte dos encargos administrativos. Dividi o hospício como o mundo, em poder temporal e poder espiritual, o que comunica ao vigário. Ao que este retrucou com uma chalaça: ainda acabo por denunciá-lo ao Papa.

A situação se agrava a partir de quando, pressuroso, comunica à Crispim, o boticário, seu fâmulo, a decisão de alargar o território da loucura, esta já não era uma ilha como pensara mas todo um continente. Anuncia seu empenho em definir os limites entre razão e loucura. Melindroso encargo diante da fronteira barrada pelo humanitismo que apregoava serem “moléstia e saúde caroços do mesmo fruto”. Não fez caso da ponderação do padre Lopes que julgava inconveniente transpor a cerca, pois “de todos os tempos já se sabe onde uma acaba e a outra começa”. Catar “a pérola que é a razão, na vasta concha do espírito humano”, eis sua suprema causa. A razão, dizia “é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades fora daí é só insânia, insânia, insânia.”

O novo conceito franqueou as portas da Casa Verde que se encheu de outros inquilinos sob as etiquetas mais diversas. A colheita famosa, instalou na comunidade o terror e a maledicência. Cada internação absurda fazia crescer a revolta contra o médico, tido por tirano, e suas motivações mesquinhas feitas de ciúmes e vantagens, de resto nunca comprovadas. Ao contrário, generoso, oficia à Câmara dispensando taxas e pagamentos.

Cárcere privado, murmura o povo revoltado sobre a Casa Verde, onde reina absoluto. Bacamarte, único árbitro do juízo dos outros, interpelado, argumenta impassível que a ciência não tem compaixão, todos são casos patológicos, não há outro remédio, senão internar. Recolhe um pródigo, um conversador contumaz, dois tipos populares entre a gente; um albardeiro próspero que se deliciava em fitar, deslumbrado, a própria casa.

Nem mesmo a esposa, Dª Evarista, retornada de temporada carioca, vaidosa, acumulada de roupas, e idéias insinuada pelo padre, consegue remover-lhe o ímpeto diagnóstico. Em decorrência explode uma revolta popular liderada pelo barbeiro Porfírio, o Canjica, cujo mote é por abaixo a Casa Verde, “bastilha da razão humana”. Vitoriosa, graças ao apoio dos militares que chegaram para reprimi-la, a Câmara é destituída e Porfírio assume o poder. Acesa a luz da ambição a próxima tarefa é cooptar o padre, que se esquiva, e Bacamarte, que ganha tempo, duas fontes do poder real, a fé, e a ciência.

Sereno, imperturbável, o alienista ouve do lider vitorioso um pedido de colaboração, pois “não está no animo do governo eliminar a loucura, discriminá-la ou reconhecê-la; tudo é matéria de ciência”. Bacamarte promete resposta, ganha tempo, interna rebeldes. Acusado de estar vendido ao ouro da Casa Verde Canjica é deposto por outro barbeiro, mais radical, João de Pina, logo afastado pelas forças da ordem, restaurada a Câmara.

Nunca esteve tão alto o prestígio de Bacamarte que exigiu a entrega de Canjica e mais de cinqüenta rebeldes logo transferidos à Casa Verde. O impulso sanguinário do Presidente e de seu entusiasmado Secretário para lavar a honra da Câmara selou o diagnóstico de “demência dos touros” e a inevitável hospitalização. A coleta desenfreada não poupou ninguém, os que davam curso a mentira, os cultores de enigma, “os fabricantes de anagramas, de charadas, os curiosos da vida alheia, um ou outro almotacé enfunado. Tudo era loucura!” Crispim, o bajulador, apoiador da revolta, também experimentou a reclusão dos lunáticos.

Martim Brito o orador do banquete de boas vindas à Dª Evarista é confinado na Casa Verde por excesso de galanteria; mais tarde, numa prova de abnegação científica confere o mesmo destino à amada esposa. Não resiste à cena de sua prolongada hesitação entre dois colares a escolher para usar no baile da Câmara. À ponderação do vigário contra a medida informa contar curá-la em seis meses da “mania suntuária” seu passaporte para ingressar no asilo do marido.

Assombrosa foi a notícia que correu dando conta de que todos os hóspedes da Casa Verde seriam postos na rua. Oficio enviado à Câmara por seu diretor além de confirmá-la informava as razões da decisão. A constatação de que 4/5 da população eram hóspedes do manicômio levou-o a rever sua teoria sobre a doença mental. Até então acreditara estarem excluídos do domínio da razão todos os casos em que o equilíbrio das faculdades não fosse perfeito e absoluto. “O fato estatístico e o exame por ele empreendido acabaram por demonstrar seu engano. A verdadeira doutrina não era aquela, mas a oposta. Normal era o desequilíbrio das faculdades e patológica toda manifestação de equilíbrio ininterrupto”. Estava estabelecido o paradigma da inversão (Sônia Brayner) visto também no conto de Poe que inspirou Machado de Assis. Os doidos de ontem são os saudáveis de hoje e os sadios de ontem, os loucos de hoje.

O parágrafo quarto do expediente anunciava que ia libertar os reclusos e agasalhar na Casa Verde os incursos na nova condição. A Câmara respondeu-lhe, outorgado o poder com a ressalva votada, a despeito da reclamação do vereador Galvão, de que em nenhum caso fossem os vereadores recolhidos ao asilo dos alienados.

A reintegração dos libertos devolveu a paz à Itaguaí até que Bacamarte recrutasse os novos doidos após meticulosa observação e investigação de antecedentes dos suspeitos de incidirem na categoria recém adotada.

Bom senso passou a ser sinal de insânia e o equilíbrio evidência de sandice; a correção, o desprestígio da virtude, demonstração de loucura.

Após cinco meses eram dezoito os retidos no hospital, entre outros o vigário, o juiz de fora e a mulher do boticário. Destino igual teve o vereador Galvão, pela sensatez demonstrada ao se opor ao dispositivo bizarro que concedia aos parlamentares imunidade mental. Os que aprovaram a noção continuavam livres por haverem revelado no episódio notório desequilíbrio. Canjica, retornou à Casa Verde, desta feita por ter sido cauteloso ao recusar o convite dos insatisfeitos para que liderasse nova insurreição.

Nessa segunda fase de sua trajetória científica o alienista esmerou-se na terapêutica que consistia no método racional de tratar cada paciente classificado segundo sua perfeição moral dominante, atacando-a de frente. A modéstia, por exemplo, era curada pelo emprego de símbolos e objetos, casaca, chapéu, bengala, anel e em casos mais graves cargos honorários. Em um caso renitente teve o auxílio eficaz da matraca que emprestou ao doente virtuoso atributo oposto ao que o enferma. O êxito foi tamanho que após cinco meses e meio a Casa Verde estava vazia.

O sucesso profissional não o alegrava de todo. Faltava alguma coisa para chegar à “última verdade “que supunha contida na nova teoria”.

Depois de muito refletir e cismar concluiu que equilíbrio e desequilíbrio coexistiam no mesmo cérebro, pois não teria como admitir que a cura decorresse de lhes ter incutido faculdade nova. Mas, sendo assim não haveria louco em Itaguaí, um só cérebro concertado?

Perplexo e aflito, diante do mistério que o desafiava atravessa “uma tempestade moral” que enfrenta resoluto por vinte minutos, quando então sua face iluminada revela que enfim chegara a uma conclusão.

Sim, reunia em si todos os elementos do perfeito equilíbrio, “sagacidade, veracidade, vigor moral, lealdade”. Assaltado pela dúvida pede o parecer de um conselho de amigos que confirma sua excelência moral. Ainda inseguro sobre seu merecimento o alienista resiste à definição que imputa à benevolência do grupo. Decide-se finalmente ao ouvir do padre Lopes que sua hesitação tinha nome: modéstia.

Convencido, recolhe-se solitário à Casa Verde, primeiro exemplar da nova doutrina a reunir em si mesmo teoria e prática. Dizem os cronistas que após dezessete meses sem que nada tenha alcançado estava acabado o perfeito mentecapto. O único louco que já houve em Itaguaí, como propagava o boato atribuído ao vigário, não obstante tenha “realçado as qualidades do grande homem”.

“O Alienista” é antes de tudo um texto político, ideológico. Uma grande metáfora do poder, um tríptico dos poderes: da ciência, da política (institucional e popular) e da Igreja. São eles que, articulados, associados ou antagônicos, num jogo de forças, organizam a sociedade determinam as regras para seu funcionamento. Machado de Assis escreveu-o sob o impacto de fatos e leituras. Embebeu sua pena em Teofrasto, Erasmo, Montaigne, Swift e Poe, para fazer por trás do biombo da loucura uma crítica ideológica severa e bem humorada. Se bem que a loucura seja o tema dominante, e Simão Bacamarte o astro da novela, há temas subjacentes nada desprezíveis, dignos de atenção. Para dar-lhes luz há que raspar a superfície do palimpsesto (Luis Costa Lima), desvelar a criptografia de Machado, desvendar suas alegorias, ver além do que está visível. O texto cobra atenção do leitor para as armadilhas da linguagem somadas às dificuldades decorrentes do tempo transcorrido.

Ciência, linguagem e poder, são segundo Luis Costa Lima tema subjacentes ao da loucura em “O Alienista”, assim como estão também representados no discurso do Rubião de “Quincas Borba”. Sem desconsiderar a loucura, um olhar mais detido sobre seu teor revela subestorias e alegorias a serem melhor conhecidas.

É chegada a hora, após todas essas considerações, de se formular a pergunta: o que questiona “O Alienista”? A resposta fará sentido se remetermos ao ambiente e questões que caracterizam o segundo reinado. A narração feita, segundo um observador externo, com base em velhas crônicas, sugere um reparo ao método historiográfico de varnhagen. O clima de entusiasmo pelo positivismo, um certo deslumbramento com a ciência e suas certezas, a euforia modernista e o germanismo da escola de Recife, foram alvos da crítica de Machado. Ao positivismo, a religião do futuro, flerte da elite militar, opôs o humanitismo, sistema filosófico filho da ironia lunática de “Quincas Borba”. Denunciou na sabedoria forânea de Bacamarte, o colonialismo cultural e a falta de autonomia intelectual suprida pela mimese dos estrangeiros. Aponta como um mal o dogmatismo da ciência, a fúria classificatória, a atitude pretensiosa dos cientistas indiferentes às reações humanas e sociais. Simão Bacamarte, “frio como um diagnóstico”, apóstolo da pesquisa, recusa explicar seus atos a quantos o questionam, inclusive ao barbeiro Porfírio, líder da revolta, pois “o sábio só presta contas à ciência”. Coisa semelhante diria, quando interpelado, lacônico: é a ciência e basta! A arrogância científica não é pois matéria apenas de ficção, mas um dado da realidade.

Para Bacamarte, devoto da ciência, não há hipóteses tímidas a comprovar, mas certezas que não se frustram porque são refeitas. Na busca do mistério da doença mental e seu remédio, seu grande objetivo, troca de teoria até dar com o epílogo do nada. Selecionou uma viúva sem graça, Dª Evarista, para esposa, segundo critério cientifico que lhe assegurava descendência. Na falta da prole consolou-se na pesquisa, sem apurar culpados, responsabilizando antes a dieta da mulher, rica em carne de porco. A ciência longe de ser neutra e pura manipula e impõe submetendo a Câmara e até o poder popular ao discurso racional que não comporta questionamento. Lembre-se que a Câmara submissa ao alienista aprovou seus projetos fazendo-se surda ao vereador dissidente que diante dos inúmeros internamentos indagava se o louco não seria ele. Expõe o privilégio dos vereadores que se outorgam imunidade contra a loucura dos equilibrados ininterruptos recolhendo à Casa Verde o vereador sensato que tomou posição contra a medida.

Simão Bacamarte não é um médico negligente, mercenário, nem incompetente, não incide em nenhuma contravenção ética, o que o faz ridículo é o rigor científico, inflexibilidade, a obsessão diagnóstica classificatória regida por uma “ética do sintoma”. Era um louco que cuidava de “loucos”. Personalidade paranoide, ou parafrênica, de acordo com Antonio Austregésilo. Um dos “engraçados desgraçados” de Afrânio Peixoto, diligente e perigoso.

Diz-se que a psiquiatria é filha da revolução francesa, nascida dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Os loucos até então recolhidos junto aos debochados, criminosos, homossexuais, passaram a ser vistos como doentes, e portanto passíveis de tratamento, a partir das idéias de Pinel e Esquirol. No Brasil os loucos foram considerados doentes mentais desde 1830. Em 1831 o médico José Martins da Cruz Jobim, pioneiro da psiquiatria nacional, escreve “Insânia Loquaz”, primeiro artigo sobre doenças mentais publicado no Brasil. Decreto de 1841 cria o Hospício de Pedro II para comemorar a sagração do Imperador, inaugurado em 1852. Em 1832 funda-se a Faculdade de Medicina, em 1830 a Academia Imperial de Medicina. Lei de 1882 dispõe sobre o ensino de psiquiatria no Brasil. Contemporâneo dos fatos Machado de Assis testemunhou a ascensão social dos médicos, o crescimento do seu poder político e moral, o progresso da medicina e o nascimento da psiquiatria nacional. A censura feita à suntuosidade do Hospício de Pedro II, chamado “Palácio dos Loucos”, o mais belo edifício da América do Sul, financiado pelos títulos nobiliários, “o imposto da vaidade”, assim chamado por José Clemente, está reproduzida com ironia em “O Alienista”. Basta lembrar a imponência da Casa Verde, desproporcional à modéstia da vila na qual estava encravada paga pelos penachos ornamentais dos cavalos dos féretros. Vaidade, póstuma, é verdade, mas vaidade ainda.

José Martins da Cruz Jobim, foi médico do paço, professor e diretor da Faculdade de Medicina, Deputado e Senador, um autêntico medalhão, saído do conto de Machado (Teoria do Medalhão). Ao censurar em discurso no Senado o comportamento boêmio dos estudantes paulistas foi contestado por Machado de Assis, sob o pseudônimo de Sileno na revista dos estudantes, “Imprensa Acadêmica” da qual era correspondente. Instalava-se ai uma desavença. Foi por algum tempo o único médico do Pedro II e possuía casa em Itaguaí. Não é improvável que Bacamarte seja seu símile fruto do sarcasmos de Machado.

Não há coincidências, ou acasos nos textos de Machado, o que ali está tem sua razão de ser, embora o leitor possa até não atinar com ela. Vejamos alguns exemplos. A festa de inauguração da Casa Verde durou sete dias, o tempo do gênese; o arabismo do alienista sugere a implicância com a carne de porco. Os antagonismos profissionais latentes seguem junto com o temor e a inveja do boticário áulico que trai o médico na primeira oportunidade; do barbeiro (cirurgião) que desafia o físico (médico). A casa é verde para acenar com a esperança, e as cinqüenta janelas estão lá para evocar o casarão da Praia Vermelha.

Os nomes próprios não são dados ao acaso encerram uma simbologia. Simão Bacamarte é o pescador de almas, ou o símio que imita, e Bacamarte a arma de caçar doidos.

Porfírio é o vermelho, o exército de Stendhal, uma das afinidades literárias de Machado, ou ainda o que luta, porfia. O apelido Canjica lembra o milho, alimento tão popular quanto o barbeiro. Evarista vem do grego, a insuperável, a melhor de todas que desmente à ciência e compõe a critica de Machado à instituição do matrimônio.

A matraca, sucedânea da imprensa na vila, orientada, espalha mentiras pela boca da verdade.

O grande embate é o que se dá de forma surda, dissimulada, entre Bacamarte e o padre Lopes, ciência versus religião. Poder divino contra o poder terreno. O advento da psiquiatria liberou a alma ao cuidado dos médicos; a Igreja perdera o monopólio da tarefa. A luta que trava para demarcar territórios, espiritual e material, é, no fundo, uma disputa pelo controle da cidade e o domínio sobre as pessoas.

Para Ivan Teixeira (O Altar e o Trono) a contenda era também um arremedo da questão religiosa, conflito que eclodiu na década de setenta entre a Igreja e o Estado, ou seja, a cruz e a coroa. O conflito, que envolvia a maçonaria, tinha por centro separar a Igreja do Estado. “Liberdade de religião é liberdade de perdição”, diziam os defensores da Igreja. Os ânimos se acirraram, os bispos de Olinda e Belém do Pará foram presos, o Papa interveio, e para desgosto dos liberais, Machado de Assis inclusive, o Imperador recuou. Algumas escaramuças depois, e vitórias parciais, padre Lopes vence a guerra e despacha, com um elogio, Bacamarte, isto é o Imperador, para a clausura fatal no manicômio. O Alienista protagonizou a primeira internação voluntária em Itaguaí.

A rebelião dos canjicas é uma sátira às insurreições que pipocavam nas províncias. Preocupava-o, a seu modo, a integridade do império. O ensaio de rebeldia convoca os oportunistas sempre à espreita. É hora da adesão covarde de Crispim, serviçal do alienista, e a da Câmara municipal aflita e enganosa.

Leme Lopes admite que o personagem Rubião expressa o pensamento de Machado de Assis sobre a loucura, endossada um século após pela psiquiatria clinico - descritiva. “Este se soma a outros respeitáveis juízos sobre o caráter precursor da obra do autor fluminense. Pioneira por igual, no emprego, em Brás Cubas, do método fenomenológico de Jaspers antes mesmo que seu criador o descrevesse.

Américo Valério insiste com ênfase, em seu livro sobre a forma como ele antecipou as idéias de Freud mediante uma prospecção profunda da alma humana. Uma autêntica “psicoscopia”, essa devassa que nunca extrapolou para “ilações coletivas”. Na perspectiva freudiana considera que Machado “autopsiou o próprio inconsciente”, desabafou nos personagens, consolou-se ao escrever. “Sem ser médico fez obra puramente médica” conclui aquele seu interprete. Falava dos sonhos e prometia-lhes um livro, isso antes de Freud interpretá-los. Na transportação onírica prazerosa afirmava que “a realidade é o luto do mundo, o sonho é a gala”.

A descrição da doença mental não é privativa dos psiquiatras. O próprio Freud reconhece a contribuição precursora da literatura para a ciência e de forma específica para a psiquiatria cientifica. Por uma simples razão: mentes enfermas são tão antigas quanto o homem e a escrita muito mais velha que a ciência. A loucura surgiu antes dos psiquiatras, a literatura é anterior à ciência. O espírito atilado dos gênios, num mecanismo intuitivo, rastreia essas forças que determinam a conduta do homem, sua forma de pensar e agir. Exteriorizam-se elas de modo diverso, na razão do equilíbrio instável em que convivem. Então, o perfeito equilíbrio mental ininterrupto de Bacamarte inexiste, seria uma aberração mental. A morte das emoções, o congelamento da vida. A interpretação literária expõe, aponta, descreve com a pena da sensibilidade do escritor. A ciência testa, comprova, sistematiza, classifica. Uma é subjetiva, impressionista, a outra objetiva, racional. A literatura é permanente, seus fundamentos são estáveis; a ciência não, se reformula, se transforma. La Donna è Móbile! O moderno de hoje é a velharia de amanhã.

Ao receber o prêmio Goethe, em discurso lido por sua filha, Freud expressa sua opinião a propósito da apurada percepção que o poeta tinha sobre os fenômenos humanos; a necessidade de autoconhecimento, de que “o homem precisa viver de dentro pra fora” como escreveu em um pequeno texto, “Uma Palavra para Jovens Poetas”.

Nem mesmo o surto contestador da antipsiquiatria que irrompeu na Inglaterra na década de sessenta com Laing e Cooper revogou a opinião de Machado sobre a loucura. Ao contrário, os adeptos do movimento encontraram nele munição para o combate em busca de reformular a assistência psiquiátrica. O núcleo do debate é, em síntese, o conceito de loucura, que consideram arbitrário e convencional e a instrumentalização da psiquiatria pelo poder, posta a serviço da ordem vigente.

Adalberto Tripicchio escreveu em “Machado de Assis, “precursor da antipsiquiatria” que “O Alienista” é a primeira contribuição brasileira ao tema, e mais, “é uma obra prima da antipsiquiatria.”

Curioso que, com formidável antecedência via ficção preenchesse os postulados da nova doutrina que são em resumo os seguintes:

A negação do modelo da doença mental.

O asilo é considerado uma instituição insana.

O psiquiatra e seu discurso tentariam impor o privilégio da classe médica para reconduzir os desviados.

(Adalberto Tripicchio)

O tempo passa e Machado continua moderno, tão moderno que o editor de suas obras pela “Oxford University Press” compara-o à Woody Allen, que o admira (Revista Cultura, Dez., 2010) ambos mestres do humor acido e elegante ontem e hoje, cá e lá.

Chegamos até aqui, guiados por mãos experientes, percorrendo sendas traiçoeiras onde os sinais trocados misturam e confundem; um labirinto de hipóteses semeadas pelo mestre. Sendo hipóteses cabe a cada um verificá-las.

O melhor a fazer é deixar-se inundar pela luz do gênio que jorra pela fresta de sua alma: seus livros.

A eles pois!

* Palestra proferida por Lúcio Alcântara na ACM, dia 12 de janeiro de 2011.