quarta-feira, 30 de agosto de 2017

A corrosão do consenso básico

Quando tudo é contestado, 
o resultado é uma democracia
 instável, imprevisível.

Vivemos uma crise multifacetada: econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos da crise, contudo é seu agravamento político. Estamos num rumo perigoso. No Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.

Qualquer sociedade democrática precisa institucionalizar valores básicos, subscritos por sua população, para assegurar sua estabilidade e um ordenado e legal processo político de mudança. Quando não há consenso em torno desses valores básicos ou quando se instala um conflito radical entre eles, a Nação tende a se dividir em dois blocos radicais e excludentes “qui hurlent de se trouver ensemble”.

É a conhecida situação da curva em U, em que o poder foge do centro e se aloja nos extremos. Caso da guerra civil, o pior dos conflitos, cujo exemplo emblemático é a Guerra Civil Espanhola, que em julho de 1936, mais que dois blocos, deu origem a “duas Espanhas”. Nessa situação, parentes e amigos evitam se encontrar, tal a hostilidade que os valores políticos antagônicos provocam entre eles. A guerra civil é a prova definitiva de que o ódio na política é muito mais forte que o ódio no amor.

Não nos encontramos nessa situação. Mas já estivemos muito mais longe dela... Entre a Espanha da guerra civil e o Brasil da crise, a Venezuela bolivariana de Maduro já se encontra muito próxima da guerra civil. Estamos ainda longe da situação espanhola, mas não tão longe da venezuelana. Atente-se para alguns valores essenciais à vida social organizada que se encontram em conflito, contestação e deslegitimação, no Brasil.

• Democracia direta para corroer a democracia representativa – A única condenação legítima é pelo voto: implica desqualificação da legislação penal; pressão por convocação de constituintes, plebiscitos, referendos e reformas políticas para substituir competências já definidas do Legislativo e do STF; manifestações com militantes “pagos” para pressionar, e forçar, decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação no Congresso e no STF.
• Quebra do consenso, tudo está em questão – Redefinição contra legem da família, do regime jurídico do funcionalismo (greve), da eleição direta de dirigentes de órgãos públicos.
Família: qual sua conformação em termos de gêneros? Malicioso enquadramento da discussão família tradicional x família moderna. Sexo: escolhe-se ou é predeterminado ao nascimento? Uso de sanitários é de livre escolha?

Democracia: qual a verdadeira democracia, a representativa ou a democracia direta? Qual o valor estruturante da democracia, igualdade e liberdade política ou igualdade econômica e social? Liberdade econômica macro: quem deve ocupar-se da atividade econômica: a livre-iniciativa ou os órgãos do Estado?
Propriedade privada é legítima e legalmente protegida ou tem legitimidade discutível e precária? A “invasão” é um delito ou é um direito?

O lucro é uma conquista legítima ou um roubo, sujeito à expropriação? O mercado é necessário ou prejudicial?

A escola deve transmitir conhecimentos ou ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo e legal a censura por deliberada exclusão? É óbvio que, na prática política, ideologia e doutrinação serão eufemisticamente definidas como “espírito crítico”.

O criminoso é responsável por seus atos ou vítima? Liberdade de imprensa é uma garantia de liberdade ou é o abuso dos proprietários? Qual o critério legítimo para a promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ou confiança política?
Símbolos religiosos não podem ser expostos em público ou é direito de qualquer religião expor seus símbolos? A vida humana é sagrada ou instrumental?

O que é a legalidade? O Estado Democrático de Direito, suas instituições e normatividade, ou esses são apenas atributos formais, inferiores aos critérios substantivos? O que é golpe de Estado, um conceito jurídico-político ou uma expressão usada na disputa política de significado arbitrário? Como entender esta frase: seguir a virtude prejudica o País (prejuízos e custos da Lava Jato)?

• Destruição da dignidade dos Poderes e das funções – Plenário do Congresso como palco para danças folclóricas, reunião indígena, concentração de minorias organizadas. Ocupação da Mesa do Senado por senadores de um partido. Legisladores usando cartazes, igualando-se a manifestantes. Cenas de pugilato, cuspidas. Obstrução invasiva apoiada por legisladores.

Como se constata, tudo é contestado. E quando tudo é contestado, corrói-se o consenso básico. Não se trata de um consenso absoluto e irreal. Trata-se de um consenso em valores básicos, centrais e de elevada hierarquia, mediante o qual a política e a administração são previsíveis; contêm regras que os cidadãos conhecem, praticam e as instituições protegem; e se consolida numa organização política democrática, unida em torno desses valores e dividida em torno de políticas públicas.

Quando tal não sucede, quando tudo é contestado, quando tudo está sempre aberto a mudanças, o que resulta é uma democracia instável, imprevisível, de precária legitimidade e duração. Tais democracias tendem a desembocar no totalitarismo, na ditadura populista ou na cronificação da instabilidade, o que parece ser o caso do Brasil.

A listagem apresentada permite identificar, no mínimo, 40 questões intensa e radicalmente divisivas. Considere-se, entretanto, que nenhuma é de importância periférica ou secundária. São todas elas indispensáveis para a configuração política, econômica, social, jurídica e cultural do País e para a qualidade de sua democracial.

A indagação que se impõe é de hierarquia correspondente à gravidade do nosso desafio como nação democrática: como uma nação com tal grau de conflito em seus valores básicos poderá construir e manter uma democracia moderna, autêntica e estável?

Por Francisco Ferraz - 
Professor de Ciência Política e ex-reitor da UFRGS, é criador e diretor do portal politicaparapoliticos.com.br.

Fonte: O Estado de S. Paulo, Espaço Aberto - Domingo (08/08/2017)

O fim do amadurecimento


Existem alguns efeitos nefastos que são claramente derivados da sociedade avançada de mercado em que vivemos. Aliás, minha principal razão de crítica à esquerda é sua incapacidade atávica de perceber a realidade. Ao contrário do que parece, a esquerda investe numa visão infantil da realidade, negando o fato de que ela mesma, a esquerda, é um dos fetiches mais chiques do capitalismo avançado.

Se a esquerda é utópica em sua crítica infantil, os liberais tampouco nos ajudam com sua utopia de que o mercado resolve tudo. Falta aos liberais reverência ao fracasso.

Falta à esquerda a humildade de se assumir como um produto do capitalismo como uma Louis Vuitton. O sucesso do melhor método de produzir condições razoáveis de vida (o capitalismo) é nosso próprio cadafalso: gente bem de vida fica, na maioria das vezes, boba.

Mas vamos ao que interessa. O fim do amadurecimento. Mas, antes, um detalhe de que não tratarei hoje: o fim do afeto. Este está em extinção devido ao seu caráter necessariamente dolorido. Não existem paixões alegres sem paixões tristes.

O fim do afeto ocorrerá em breve e ele está intimamente associado ao fim do amadurecimento porque este implica naquele. Não há amadurecimento sem sofrimento e esse é o foco de todo o esforço moderno: eliminar o sofrimento.

Calma. Não estou aqui a fazer um elogio à agonia. Nem ao sofrimento. Não precisamos procurá-los, eles nos encontram de forma inevitável. Toda pessoa normal, como diziam utilitaristas como Jeremy Bentham (1748-1832) e John Stuart Mill (1806-1873), foge da dor e busca o bem-estar. Estou a dizer que o utilitarismo transformado em comportamento sistemático produziu o momento mais infantil da espécie: nossa era.

Pode-se notar claramente o fim do amadurecimento tanto no comportamento dos mais jovens como no dos mais velhos. O amadurecimento não é algo que se busca ou se compra. Ele está mais perto do fracasso do que do sucesso. É aquele tipo de estado de espírito que se revela mais no silêncio do que no ruído da autoafirmação. Pede paciência, como o conceito pede, diria Hegel (1770-1831).

E levanta voo no final do dia, como a coruja da filosofia, segundo o mesmo Hegel. Por isso sempre associamos o amadurecimento aos mais velhos. Quando se vê avós querendo imitar netas, pode apostar que o contrário do amadurecimento, o retardo mental, se instalou como modo de vida.

Nos jovens, o estrago é cada vez pior. Chegam a universidade atolados em "políticas de vulnerabilidade". Você não sabe o que é isso? Explico.
Em 2004, o sociólogo inglês Frank Furedi, no seu "Therapy Culture", ainda sem tradução no Brasil, apontava, a partir de uma pesquisa empírica na mídia impressa britânica, o crescimento de termos psicológicos que descrevem vulnerabilidade: angústia, necessidade de aconselhamento, ansiedade, distúrbios de atenção, e outros.

Nas escolas e universidades, o impacto é enorme. Pais e profissionais, de forma disfarçada, pressionam as instituições de ensino para "aprovarem" seus filhos em nome de seus diagnósticos. A vulnerabilidade clínica deve ser critério, pensam o ideólogos dessas políticas de vulnerabilidade, para aprovação. Usam termos como "inclusão" para justificar velhas práticas de negação dos resultados ruins de seus filhos e pacientes.

O resultado, entre outras coisas, é que os jovens são cada vez mais frágeis, com quase nenhuma "resiliência" (nome da moda pra se referir à velha força de caráter, fora de moda). Sendo uma avaliação algo além de mera devolutiva de conteúdo da matéria, essa mesma avaliação passa a ser um instante de enorme stress patológico. Algum dia desses, um professor será processado por reprovar um aluno.

E o problema é que a pedagogia, muitas psicólogas e parte do Ministério Público endossam esse desastre para o amadurecimento.

O ganho secundário, como diria Freud (1856-1939), dessa neurose da vulnerabilidade é que esses jovens são "poupados" de qualquer responsabilidade moral. Uma catástrofe em nome da vulnerabilidade. Uma geração inteira de medrosos com iPhones. 


Por Luiz Felipe Pondé

Fonte: Folha de S. Paulo, Ilustrada - Segunda-feira (17.07.2017)

As substâncias medicinais da maconha


O uso da maconha foi proibido a partir da conferência internacional do ópio, realizada em Genebra em 1924. Decidiu-se na época que era mais perigosa do que o ópio.

Em nosso meio, segundo o professor Elisaldo Carlini, da Unifesp, a partir da década de 1930, seu uso foi proibido e os usuários passaram a sofrer perseguição policial.

Antes da proibição, a Cannabis já era usada no tratamento de convulsões em crises de epilepsia.

Em 2003, a OMS autorizou o uso médico da tetra-hidrocanabinol, substância derivada da maconha. No Brasil, a RDC 79/2016 da Anvisa incluiu os canabinoides como produto médico controlado sob receita médica.

Raphael Mechoulan, da Universidade Hebraica de Jerusalém, recentemente fez uma revisão, na revista "Epilepsy & Behavior", dos canabinoides e do uso dos princípios ativos da maconha.

Em pesquisa publicada em 1964 no "Journal of the American Chemical Society", Mechoulan, em colaboração com Yechiel Gaoni, relatou o isolamento pela primeira vez do tetra-hidrocanabinol, no Instituto Weizman de Ciências de Israel. Mais tarde, essa e outras substâncias ativas da maconha passaram a ser usadas no tratamento de crises epilépticas de crianças, onde outros remédios falharam. Essas substâncias estão sendo estudadas para controle da dor e em problemas autoimunes.

Pelo pioneirismo de Mechoulan, está sendo organizada uma conferência internacional em sua homenagem pela Universidade Hebraica de Jerusalém e pela Sociedade Internacional de Pesquisas em Canabinoides. 


Fonte: Folha de S. Paulo, Plantão Médico, por Júlio Abramczyk - Sábado, 5/08/17).