Quando tudo é contestado,
o resultado é uma
democracia
instável, imprevisível.
Vivemos uma
crise multifacetada: econômica, política, social jurídica, cultural, ideológica
e histórica. Mais grave que os aspectos econômicos, sociológicos ou jurídicos
da crise, contudo é seu agravamento político. Estamos num rumo perigoso. No
Brasil tudo está em questão. A isso nos levou a confusão cultural, normativa e
comportamental que resultou da dilaceração do tecido social.
Qualquer
sociedade democrática precisa institucionalizar valores básicos, subscritos por
sua população, para assegurar sua estabilidade e um ordenado e legal processo
político de mudança. Quando não há consenso em torno desses valores básicos ou
quando se instala um conflito radical entre eles, a Nação tende a se dividir em
dois blocos radicais e excludentes “qui hurlent de se trouver ensemble”.
É a
conhecida situação da curva em U, em que o poder foge do centro e se aloja nos
extremos. Caso da guerra civil, o pior dos conflitos, cujo exemplo emblemático
é a Guerra Civil Espanhola, que em julho de 1936, mais que dois blocos, deu
origem a “duas Espanhas”. Nessa situação, parentes e amigos evitam se
encontrar, tal a hostilidade que os valores políticos antagônicos provocam
entre eles. A guerra civil é a prova definitiva de que o ódio na política é
muito mais forte que o ódio no amor.
Não nos
encontramos nessa situação. Mas já estivemos muito mais longe dela... Entre a
Espanha da guerra civil e o Brasil da crise, a Venezuela bolivariana de Maduro
já se encontra muito próxima da guerra civil. Estamos ainda longe da situação
espanhola, mas não tão longe da venezuelana. Atente-se para alguns valores
essenciais à vida social organizada que se encontram em conflito, contestação e
deslegitimação, no Brasil.
• Democracia direta para corroer a democracia representativa – A
única condenação legítima é pelo voto: implica desqualificação da legislação
penal; pressão por convocação de constituintes, plebiscitos, referendos e
reformas políticas para substituir competências já definidas do Legislativo e
do STF; manifestações com militantes “pagos” para pressionar, e forçar,
decisões legislativas ou jurídicas em normal tramitação no Congresso e no STF.
• Quebra do consenso, tudo está em questão – Redefinição contra
legem da família, do regime jurídico do funcionalismo (greve), da eleição
direta de dirigentes de órgãos públicos.
Família: qual sua conformação em termos de gêneros? Malicioso
enquadramento da discussão família tradicional x família moderna. Sexo:
escolhe-se ou é predeterminado ao nascimento? Uso de sanitários é de livre
escolha?
Democracia:
qual a verdadeira democracia, a representativa ou a democracia direta? Qual o
valor estruturante da democracia, igualdade e liberdade política ou igualdade
econômica e social? Liberdade econômica macro: quem deve ocupar-se da atividade
econômica: a livre-iniciativa ou os órgãos do Estado?
Propriedade privada é legítima e legalmente protegida ou tem
legitimidade discutível e precária? A “invasão” é um delito ou é um direito?
O lucro é
uma conquista legítima ou um roubo, sujeito à expropriação? O mercado é
necessário ou prejudicial?
A escola
deve transmitir conhecimentos ou ideologia? Educação ou doutrinação? É legítimo
e legal a censura por deliberada exclusão? É óbvio que, na prática política,
ideologia e doutrinação serão eufemisticamente definidas como “espírito
crítico”.
O criminoso
é responsável por seus atos ou vítima? Liberdade de imprensa é uma garantia de
liberdade ou é o abuso dos proprietários? Qual o critério legítimo para a
promoção salarial ou na carreira: desempenho (mérito) ou confiança política?
Símbolos religiosos não podem ser expostos em público ou é direito
de qualquer religião expor seus símbolos? A vida humana é sagrada ou
instrumental?
O que é a
legalidade? O Estado Democrático de Direito, suas instituições e normatividade,
ou esses são apenas atributos formais, inferiores aos critérios substantivos? O
que é golpe de Estado, um conceito jurídico-político ou uma expressão usada na
disputa política de significado arbitrário? Como entender esta frase: seguir a
virtude prejudica o País (prejuízos e custos da Lava Jato)?
• Destruição da dignidade dos Poderes e das funções – Plenário do
Congresso como palco para danças folclóricas, reunião indígena, concentração de
minorias organizadas. Ocupação da Mesa do Senado por senadores de um partido.
Legisladores usando cartazes, igualando-se a manifestantes. Cenas de pugilato,
cuspidas. Obstrução invasiva apoiada por legisladores.
Como se
constata, tudo é contestado. E quando tudo é contestado, corrói-se o consenso
básico. Não se trata de um consenso absoluto e irreal. Trata-se de um consenso
em valores básicos, centrais e de elevada hierarquia, mediante o qual a
política e a administração são previsíveis; contêm regras que os cidadãos
conhecem, praticam e as instituições protegem; e se consolida numa organização
política democrática, unida em torno desses valores e dividida em torno de
políticas públicas.
Quando tal
não sucede, quando tudo é contestado, quando tudo está sempre aberto a
mudanças, o que resulta é uma democracia instável, imprevisível, de precária
legitimidade e duração. Tais democracias tendem a desembocar no totalitarismo,
na ditadura populista ou na cronificação da instabilidade, o que parece ser o
caso do Brasil.
A listagem
apresentada permite identificar, no mínimo, 40 questões intensa e radicalmente
divisivas. Considere-se, entretanto, que nenhuma é de importância periférica ou
secundária. São todas elas indispensáveis para a configuração política,
econômica, social, jurídica e cultural do País e para a qualidade de sua
democracial.
A indagação
que se impõe é de hierarquia correspondente à gravidade do nosso desafio como
nação democrática: como uma nação com tal grau de conflito em seus valores
básicos poderá construir e manter uma democracia moderna, autêntica e estável?
Por Francisco
Ferraz -
Professor de Ciência Política e ex-reitor da UFRGS, é criador e
diretor do portal politicaparapoliticos.com.br.
Fonte: O Estado de S. Paulo, Espaço Aberto - Domingo (08/08/2017)