quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

A viagem de São Brandão - O paraíso na Terra - Parte II

6 – Cartografia Medieval – Fatos e Mitos


O Atlântico, o mar aberto, em contraposição ao Mediterrâneo, o mar cerrado, constituía um grande desafio a ser superado na Idade Média, sobretudo nos primeiros séculos. A cultura clássica, permeada por narrações tais como a submersão da Atlântida e as peripécias de Ulisses, terminou por impor limites além dos quais a navegação seria impossível. Após as colunas de Hercules, postadas no estreito de Gibraltar, do cabo Não, (“Quem passar o cabo de nam ou tornara nam”, João de Barros em Ásia. Primeira Década), do Bojador, estava o desconhecido, o mar tenebroso, cheio de perigos e mistérios. Ali acabava o mundo segundo a crença medieval. Vencê-los e conhecê-los foi a determinação do homem impulsionado pela curiosidade e a fé.


O aperfeiçoamento das técnicas de navegação e a dilatação do cristianismo permitiram a conquista do Atlântico no curso de um itinerário que a civilização registrou como uma combinação, às vezes indistinta, entre a certeza e o fantástico.

Foi, nesse mar, povoado de ilhas reais e imaginárias, vestígios da Atlântida, que navegantes aventureiros venceram temores para buscar o Paraíso e construir utopias.

Terras fantásticas, algumas mencionadas desde a antiguidade, cujo prêmio de encontrá-las era a vida em paz e harmonia no gozo de todas as delícias. Gregos e romanos já se referiam a ilhas míticas clássicas, a Atlântida desaparecida, de Platão, a Tule (centro do mundo), de Homero, as Afortunadas, “fortunate” dos romanos, situadas para além do mundo habitado “onde os antigos bárbaros tenham crido estavam os Campos Elíseos” (44:13) . Ilhas inspiram sonhos, sugerem repouso, felicidade, uma existência idílica à parte do mundo e sua agitação. Sedes ideais de utopias e nirvanas.

De um modo geral o cristianismo se valeu do conteúdo cultural da antiguidade para adaptá-lo a seus propósitos. O dinamismo do comércio, o progresso das técnicas de navegação e a fé na providencia divina lançaram o homem no Atlântico na epopéia das descobertas perdidas entre sítios imaginários frutos de lendas e da religiosidade dominante. Não se estranhe, pois, que Zurara, cronista oficial, acrescente às cinco razões que levaram o infante D. Henrique a demandar terras da África uma sexta, “raiz de onde todas as outras procedem: e isto é inclinação das rodas celestiais” (38:45). Um sinal da convivência, comum à época, entre teologia e astrologia.

Gustavo Barroso (2:1:27) listou didaticamente essas ilhas misteriosas consideradas principais.

1 – Antilia – cuja denominação antecipa as Antilhas que Colombo encontrou antes de atingir a costa americana.

2- Stocafixa – corruptela de stock-fish, o bacalhau. Corresponde à Terra dos Bacalhaus ou Terra Nova, conhecida antes da América pela viagem dos Corte Real.

3 – Royllo – paralela à Antilia, medindo doze léguas de comprimento e dez de largura.

4 – Man Satanaxio ou Mano Satanaxio – que significa mão ou mãe de satanás. Reza a lenda que a mãe ou mão de satanás fazia naufragar misteriosamente as naus que se aproximassem de suas costas rochosas. Haveria alguma relação com a atividade vulcânica dos Açores?

5 – Salomão – Onde estaria, milagrosamente conservado o seu corpo.

6- Mariéniga

7 – Drogeo

8 – Não encontradas – seriam ilhas errantes, invisíveis do período clássico, entre elas estaria a de São Brandão.

9 – São Brandão

10 – Oro – seria a mesma ilha dos Lobos que proveio de ilha D’Lovo, troca do V pelo B.

11 – Cabreira – por ter muitas cabras. Uma das Canárias que Ptolomeu denomina Capraria.

12 – Ventura – repisava a lenda das ilhas Afortunadas.

13 – Górgadas – onde Teseu cortou a cabeça de Medusa.

14 – Eternas – representam o mito da felicidade no Paraíso que inspirou Ponce de Leon, maravilhado com o que descobrira ao procurar a fonte da juventude.

15 – Sanzorzo – São Jorge do grupo dos Açores.

16 – Corvo Marinho – é a ilha do Corvo.

17 – Yma – pouco referida. Aparece nas lendas das viagens de São Macuto, ou Malô. Em algumas das versões da “peregrinatio” aparece como um dos companheiros de São Brandão.

18 – Do Homem e da Mulher – provavelmente por serem próximas uma da outra.

19 – Afortunadas – assim chamadas graças a sua fertilidade, clima ameno e estável, ventos suaves e úmidos, pureza do ar, onde era possível alimentar-se, sem plantar nem cultivar. Não é de estranhar que os antigos tenham crido que aí estavam os Campos Elíseos, repouso das almas merecidas, no extremo do mundo.

20 – Sete Cidades – por ter abrigado sete bispos lusitanos fugidos dos mouros quando estes ocuparam a península ibérica. Muito procurada e uma das “nunca encontradas”. Confundida com a Antília.

21 – Essores – são os Açores, descobertos em 1432 por Gonçalo Velho Cabral.

22 – Montorio – uma adulteração toponímica que remonta à “moltonis”, “moutons”, ilha dos Carneiros.

23 – Ilha dos Pombos – também dita dos Pássaros. Lembra a ilha do Pico por sua abundância de pombos selvagens.

24 – Verde – eco de uma terra feliz no ocidente. A verde Erin dos irlandeses, Groenlândia. Há uma ilha Verde na costa do labrador.

25 – Tibias e Tausens – estão no mapa de Juan de La Cosa, de 1500.

26 – Maida – sobre ela só há suposições . Uma delas é que derive de Man Santanaxio.

27 – Cerne – situada próxima da costa da Líbia vem da antiguidade e acompanha a ilha de São Brandão indo parar com ela no mar das índias.

28 – Do Brasil – sobre esta e a de São Brandão iremos lançar um olhar mais detido, ainda que breve.

Quanto a possível ocorrência delas, há três aspectos a considerar (20-33):

1 – A descoberta de algumas, na segunda metade do século XV, com a exploração da costa ocidental africana depois de ultrapassado o Bojador.

2 – A concessão de cartas régias a navegadores doando terras a serem encontradas, o que incentivava a navegação.

3 – A persistência de mitos pelos séculos seguintes que, nunca achados, provocaram a organização de expedições para buscá-los.

A propósito dessas ilhas reinava uma enorme confusão que em muito dificulta sua identificação. Sua grafia é variável, a localização muda conforme o mapa e denominações diferentes se referem à mesma ilha. O equívoco seria, em grande parte, desfeito no século XV em decorrência das navegações portuguesas a partir da descoberta da Madeira (1420) e Açores (1432). O mapa de Cresquesj, á produto da moderna cartografia, contribuiu para extirpar absurdezas e fantasias lendárias (11:296).


6.1 – Da ilha de São Brandão

O primeiro registro cartográfico desta ilha vem no mapa de Ebstorf (1270) com a legenda: “insula perdita quam invenit sanctus brendanus a (d) qua(m) cum navigasset a nullo homine postea etinuenta”, a ilha perdida esta achou São Brandão, e depois de nela ter navegado, nunca mais nenhum homem a achou.

O planisfério de Hereford identifica-a como as ilhas Afortunadas conforme anotação: “Fortunate insule sex sunt insule Brandani, os mapas de Dulcert (1339), dos irmãos Pizzigani (1362-1367), de Soleri (1380-1385) e Beccario (1426) colocam-na sucessivamente na posição da Madeira (daí provavelmente o nome de Porto Santo), como Afortunadas (junto às Canárias, em Pizzagani) e Açores (ilhas Capraria e Lobo). No mapa Pizzigani ao lado da ilha de São Brandão está uma imagem do abade abençoando-a. No globo de Nuremberg, primeira representação esférica da terra, executado por Martin Behaim (1492) a ilha de São Brandão surge em posição inédita no meio do Atlântico norte (B:55) a ocidente de Cabo Verde com Antilia ao norte (28:2:7).

O estudo da seqüência dos aparecimentos cartográficos da ilha revela sua transferência para mares menos freqüentes como a justificar seu nunca achamento (20-54); é incrível que tenha sido preservada nos mapas do século XIII à primeira metade do século XIX quando já não havia mais terras a descobrir (28:1:2).

A ilha de São Brandão, ou perdida, foi descrita por Leonardo Torriani em um texto intitulado a ilha Antilia ou de São Brandão que não se encontra (44:199). Inusitado que no mapa da ilha que acompanha o texto distinguem-se claramente as torres que identificam a ilha das Setes Cidades. O que pode levar a crer se tratarem, Antilia, São Brandão e Sete Cidades da mesma ilha. Segundo ele, Ptolomeu teria mencionado esta ilha porque “aprositus”, que apresentava como uma das Afortunadas significa lugar onde não se pode chegar, ou lugar que não aparece. A dificuldade de acesso à ilha se deveria às fortes correntes à sua volta e os poucos que a visitaram nunca mais a viram.

A lenda de São Brandão que chega a Portugal no século XVI narra o curioso achado de uma terra chamada de ilha Brasil de Brandão, que traduz uma origem céltica (2:74). As duas, Brandão e Brasil, seriam uma só.

6.2– Da ilha Brasil

A cartografia registra o nome Brasil muito antes da descoberta pelos portugueses da vastíssima extensão de terra sul-americana. Desde a carta portulana de Medici (1351) aflora no oceano uma ilha em forma de disco, ou com uma chanfradura que sugere um rio, por nome Brazil, Berzil ou Brasil (K1:99).

Adelino José da Silva D’Azevedo em seu livro “Este nome...Brasil” organizou uma tábua de ocorrências cartográficas onde há pelo menos setenta registros da ilha em diferentes mapas de autoria e datas diversas (2:399). As localizações variam e até há deles que registram mais de uma ilha com o nome de Brasil. O mapa de Pareto traz duas, uma ao sul das ilhas britânicas outra em frente ao estreito de Gibraltar. Já o portulano Pizzigani identifica três ilhas, uma a oeste, outra a nordeste dos Açores e a terceira a sudoeste da Irlanda. Ao longo dos séculos, a ilha Brasil deslocou-se cartograficamente e percorreu um longo trajeto etimológico. Desde cinabrio até o Brasil de nossos dias o topônimo esteve sempre vinculado, quanto à semântica, à cor vermelha. Vermelho das tinturas, de origem mineral ou vegetal. Os topônimos Hy Brasil e O’Brasil remetem à raiz celta Bressail que se refere à cor sanguínea. Seria uma alusão à cor de uma lendária gente vermelha perdida no Atlântico, onde fenícios e gregos procuravam estanho e o “vermelhão” (óxido de estanho). Lembro, em apoio à essa vertente dedutiva, que o prefixo O’representa descendência, netos.

Outra hipótese admite que Brasil derive do celta “bress” depois “bless”, do inglês, significando abençoar.

O fato é que o mito da ilha de São Brandão tem a ver com a ilha Brasil (351:7). Por sua vez anotada no mapa de fra Mauro (1549) como Berzil, acostada à Irlanda, com o apontamento “eusta isola de hibernia son dite afortunate” (2:264). Assim, ao falarmos das ilhas de São Brandão, Brasil e Afortunadas estaríamos nos reportando as Canárias de hoje.

Surpreendente que haja registros da ilha Brazil nos séculos XVII e XVIII só sendo eliminada das cartas do almirantado inglês, onde permanecia como “Brazil Rock”, em 1875 (36:28).

Uma visita rápida sobre a cartografia medieval nos ajudará a entender a razão da instabilidade topográfica e toponímica dessas ilhas míticas.


6.3 – Dos mapas


A idade média produziu entre os anos de 1200 a 1500 cerca de 1100 mapas mundi (17:65) executados sob o controle dos monges. Daí o componente teológico que os caracterizou. Não tinham compromisso com o concreto, a noção de distância ou escala, nem buscar orientar o deslocamento no espaço. A geografia visava mais o homem que o meio físico (17:110). Reinava uma espécie de geografia da expectativa. Esses mapas eram uma simbiose de naturalismo e alegorias nos quais não faltavam rios, ilhas reais e inexistentes, elementos da flora e da fauna, passagens históricas, e representações cristãs onde assoma a figura de Cristo, o Paraíso, cenas bíblicas. De grande dimensão, os mapas de Ebstorf (1225) e Hereford (1229) sobre os quais iremos discorrer buscavam demonstrar o mundo em uma única página. Ebstorf, o maior de todos, media 14m² (16:45). Se “um mapa é chamado imagem, do mesmo modo, um mapa-mundi é a imagem do mundo”, é a notação de Ebstorf (16:10). Expostos em paredes constituíam um meio de comunicação ao alcance das classes populares que urgia converter. Funcionaram como intermediários culturais (17:101,102) lembrando que eram produtos clericais, eruditos, que ao absorverem componentes folclóricos tornaram as mensagens que transmitiam compreensíveis aos incultos. Na sua ambigüidade expressam a integração entre as duas culturas, a convergência entre o erudito e o popular, o mosteiro e a rua. Equilibrando texto e imagem, o conteúdo dominante, atendiam à exigência visual que predominou na Idade Média. Já se disse que as imagens eram a bíblia dos iletrados.

Para uma melhor compreensão do ambiente cultural medieval é indispensável uma análise conjunta dos mapas e das narrativas que mutuamente se explicam baseados que são em um mesmo substrato de grande religiosidade (17:135,136).

Segundo Andrews, citado por Paulo Roberto Soares de Deus (17:65), os mapa-mundi medievais estariam distribuídos em três famílias: ecumênica, hemisférica e intermediária as quais podem ser desdobradas em outras categorias segundo o inventário de Destombes (17:65). Os primeiros representam o mundo conhecido, habitado, o ecúmeno. A segunda família compreende os que pretendem representar os dois hemisférios do globo.

Esses mapas são de forma variada (circular, oval, etc), tamanhos diversos e níveis de detalhamento muito diferentes. Daí a subdivisão dos ecumênicos em T-O e simples.

Os chamados T-O são os mais esquemáticos. Neles o mundo está dividido em três continentes: Ásia, Europa, África, sendo a Ásia o mais importante deles. A divisão do mundo em três continentes remonta à antiguidade, mas a propagação do modelo deve-se a Isidoro de Sevilha. O nome decorre do formato que lembra a letra T inserida em um círculo O, abreviatura de “Orbis Terrarum”, globo ou círculo da terra (16:66; 17:83). Aos três continentes correspondem os filhos de Noé, Sem, Jafete e Cham enquanto os travessões representam mares e rios. Derivados dos T-O há mapas complexos com desenhos, topônimos e figuras de toda espécie. Desses os que nos interessam no momento são os de Ebstorf e Hereford. Armando Cortesão (11:170) cita o caso único de um T-O dividido em quatro partes sendo que nada há escrito no quarto superior direito. Seria a quarta parte do mundo, representada por uma ilha (Insola ori sunt III partes mundi) como está em um códice do Vaticano no século VIII (11:170).




Mapa T.O.


A cartografia medieval não era técnica, mas uma manifestação erudita, imprestável para instruir deslocamentos. Para viagens marítimas havia os portulanos, para as terrestres os itinerários dos caminhos. O mar para aqueles cartógrafos tinha pouco interesse, servia mais como moldura para o ecúmeno (17:128).


6.4 – Do mapa de Albi

Simples e esquemático o mapa de Albi, do século VIII, é a carta medieval mais antiga que chegou até os nossos dias. Com forma retangular arredondada nas pontas reproduz o Mediterrâneo e mais umas poucas ilhas, sem menção ao Paraíso.


6.5 – Do mapa de Ebstorf

Elaborado no mosteiro alemão de Ebstorf (1230-1250) este mapa mural foi destruído quando de um bombardeio sobre Hannover em 1943. Restam cópias em bibliotecas alemãs e na Biblioteca Nacional de Paris (16:1,2). Ebstorf, assim como Hereford, obedece a um conceito comum: têm a função de apresentar a forma do mundo, toda a criação, as criaturas de Deus (16:77). Possuem claramente um objetivo pedagógico. São verdadeiras miscelâneas que contêm passagens bíblicas, cidades, rios, mares, animais, plantas, figuras míticas, simbolismos, seres humanos e os portentos e coisas portentosas. Denominações preferíveis a monstro são, segundo São Isidoro de Sevilha, deformações da figura humana, graves no primeiro caso, leves no segundo (15:191).

A carta de Ebstorf caracteriza-se pela figura de Cristo que espalha sua palavra confundindo-se com a representação do mundo, referência à teoria do micro-macrocosmo defendida por Gervásio de Tilbury, autor do mapa. No extremo leste está o Paraíso, numa apresentação ideográfica clássica. Ao centro está Jerusalém, em cujo interior Cristo ressurecto porta um cetro em forma de cruz, braço direito levantado e uma auréola dourada ao redor de sua cabeça.

O Paraíso em Ebstorf localiza-se na Ásia, ocupa, situação incomum, um vale, não acessível pelo mar, ao contrário do de São Brandão, que está no ocidente em uma ilha marítima. Paulo Roberto Soares de Deus (15:17; 16:96) afirma que a ilha de São Brandão surge pela primeira vez na cartografia no mapa de Hereford com a inscrição já mencionada anteriormente. Armando Cortesão (10:249) todavia assinala que essa ilha já vem em Ebstorf sob a legenda: “A ilha perdida: esta achou São Brandão, e depois de nela ter navegado, nunca mais qualquer homem a achou.”




Mapa de Ebstorf



6.6 – Do mapa de Hereford

Este mapa é o mais conhecido dos monumentos cartográficos mundiais e o maior que sobreviveu à Idade Média (11:249). É um mapa mural, móvel, confeccionado por Ricardo Haldigham sobre a pele de um novilho medindo 1,59m de altura por 1,40m de largura. Atualmente está exposto na Catedral de Hereford onde fica também a biblioteca acorrentada (Chained Library) (15:5). De aparência simples é na verdade extremamente complexo e contraditório. Composto de textos, contam-se 1100 inscrições, e uma iconografia rica e diversificada, constituiu uma síntese, uma “summa” da percepção da vida medieval. Ambos, Ebstorf e Hereford, têm a mesma raiz; seus autores beberam nas mesmas fontes, a Bíblia, São Jerônimo, Paulo Orósio, Isidoro de Sevilha e histórias populares. Em relação às ultimas, embora aproveitadas na confecção dos mares, eram hierarquicamente inferiores aos conhecimentos derivados da ortodoxia clerical. Exemplo disso é o Paraíso insular, atribuído à ilha de São Brandão, fruto da cultura folclórica, dos mapas de Moguncia e Hereford, bem assim a Taprobana do mapa Cottoniano (séc. X) com a mesma forma e posição dos dois outros a assinalar o fim do mundo conhecido. Colocada no ocidente no mapa de Hereford, na sua parte inferior, a ilha de São Brandão convive na mesma carta com a representação clássica do Paraíso situado no alto e no oriente. Conservadores, os cartógrafos medievais incorporavam novas informações sem descartar as antigas o que acabava por dar lugar a contradições. Em cima o mapa contém a imagem de Cristo, a cena do juízo final, e abaixo a Virgem com o busto descoberto protegida por um manto. É Maria lembrando-o do leite que lhe ofereceu: “veja, amado filho, meu seio, de onde tiraste tua carne e mamaste leite”. E pedindo, “tende piedade de todos, como vós mesmos prometeste a que me serviu...”. Há esboços de rotas que sugerem destinos de peregrinação, Compostela, Roma, e o itinerário do apóstolo Paulo, longe, todavia de significarem orientação para viagens, até pela dimensão do mapa que impede sua portabilidade. O foco estava no deslocamento espiritual e não no material.


Mapa de Hereford




Biblioteca acorrentada (chained library) localizada na Catedral de Hereford.


Para exemplo tomemos o pelicano, animal de forte carga simbólica, cuja presença destacada é uma metáfora para o martírio de Cristo. O desenho, um dos maiores do mapa, mostra um ninho com três filhotes e na borda dele um pelicano adulto com o bico dentro da abertura no peito. Alusão à lenda de que tendo morto os filhotes, após três dias abre o peito em auto-sacrifício e consegue ressuscitá-los (15:168).

Um rosto humano, junto a uma cidade, indicada como Ur sugere tratar-se de Abraão, conclusão que cabe ao espectador tirar.

Rico em metáforas o mapa é um mosaico onde coabitam o divino e o humano, o fantástico, o natural e o transcendental. Nele a abundância de símbolos e signos constitui um mistério a desvendar para o que não há uma chave única, a interpretação é arbitrária, variável, segundo cada observador, que decodifica a mensagem ao avaliar em conjunto imagem e texto.

Tanto em Ebstorf, quando em Hereford, Jerusalém ocupa o centro da carta. Na primeira como um quadrado contendo desenho da ressurreição de Cristo; na segunda como um círculo, acima do qual está a imagem do Cristo crucificado ao lado do qual se lê “mons calvarie” (16:90).

Por fim, registre-se a presença de três objetos externos ao mapa: acima, Cristo julgando os homens no juízo final; abaixo, à esquerda, Julio César recomendando a três sábios que sigam por todo mundo e elaborem um relatório a ser entregue ao senado, e à direita, um homem sobre cavalo, seguido por um pajem e um cachorro (galgo) com quem vai à caça. Pouco acima da cabeça do pajem lê-se “passe avant” que em anglo-normando pode ser traduzido como “passe adiante” (16:95,96). As duas cenas inferiores estariam relacionadas ao autor. A continuação da tarefa em nome da Igreja, sucessora de Roma. A imagem da caça, sugestão de um intervalo de lazer em meio ao trabalho.

Detalhe do mapa de Hereford. A seta indica a ilha de São Brandão


6.7 – Da nova astronomia


A nova astronomia de Copérnico, Galileu e Kepler substituiu progressivamente o céu pelo além (15:479) e facilitou as grandes navegações que determinaram um ciclo de descobertas. As ilhas achadas serviam de apoio às viagens de longo curso ao tempo em que eliminavam a existência de suas congêneres míticas no concreto, se não no plano espiritual. Estabelecia-se o predomínio da geografia positiva sobre a geografia mítica. A conseqüência dessa frustração foi empurrar cada vez mais o Paraíso para o ocidente adiando a esperança de um dia encontrá-lo. Se a técnica não confirmou a crença no Paraíso Terrestre acendeu a esperança de que por meio dela viesse a ser possível um dia atingi-lo. Não é por acaso que a cartografia repercute este sentimento localizando o Paraíso Terrestre em pontos inexistentes. (20:60)

O clímax da ocidentalização do Paraíso terá ocorrido com a chegada de Colombo à América. Disso dá conta carta que enviou aos reis católicos em 1498 por ocasião de sua terceira viagem (21:43) cujo trecho transcrevo a seguir: “Não conheço e nem jamais conhecerei nenhum escritor latino ou grego que defina de maneira segura a posição do paraíso terrestre (...). não admito que tenha uma forma de uma montanha, como foi escrito, mas considero que está no cume de um lugar qualquer que tenha a figura da extremidade superior de uma pêra e que, pouco a pouco, avançado nessa direção vindo de uma grande distância, se vá gradualmente ascendendo-a. Creio que, como o disse, ninguém possa chegar ao seu cume, e que esta água possa vir deste lugar, ainda que seja longe e venha a desembocar ali donde eu venho formando-se este lago (refere-se a foz do Orenoco). Estes são os grandes indícios do paraíso terrestre, porque é o lugar e conforme ao parecer dos santos e sagrados teólogos e ainda porque os traços estão em muito de acordo já que jamais li ou ouvi que tanta quantidade de água doce se encontrasse tão dentro e tão misturado com a salgada. Nisto muito ajuda o clima ameníssimo. No entanto se esta água não vem do paraíso, então é maior a maravilha, porque não creio que se encontre no mundo um rio tão grande e tão profundo.”

Se os descobrimentos marítimos destruíram a noção potencial de Paraíso terrestre ainda houve tempo para os europeus pensarem inicialmente tê-lo encontrado no novo mundo, na América de Colombo e no Brasil de Cabral.


7 – O que sobrou do paraíso?


Com este título Jean Delumeau escreveu um belo livro que investiga a migração do Paraíso material, feito de imagens, para o Paraíso imaterial, incorpóreo, etéreo, e os efeitos disso sobre a fé cristã. Uma mudança radical, a transferência de um Paraíso externo para o interior do homem. O triunfo da palavra sobre a imagem, do virtual sobre o concreto, do espiritual sobre o material.


A invisibilidade do Paraíso Terrestre tão perseguido pelo homem medieval acabou por permitir fosse transposta a barreira que o separava, na visão mítica dos visitante do Paraíso Celeste, espaço do divino, morada das almas. O Paraíso deixara de ser um lugar para se transformar em uma promessa do futuro. Enquanto foi visto como um limite do mundo assegurou a conexão entre o céu e a terra, os laços, entre os vivos e os mortos; estes rememorados na vida dos santos e mártires da igreja, nas missas e festas religiosas, na esperança de reencontros na eternidade.

Quando o homem desobedeceu ao Senhor e comeu do fruto da árvore da ciência trocou a imortalidade, que durou poucas horas, (22:132), pelo conhecimento. A expulsão de Adão e Eva, com a conseqüente perda da perfeição, dava início à história e ao primeiro mito. Começava a trajetória pontilhada de tribulações humanas e a primeira utopia do homem foi a reconquista do Paraíso. Deus pai fechou-lhe as portas; Deus filho as reabriu pelo sacrifício na cruz, aos que o merecessem.

Mircea Eliade (17:72) considera que a religião cristã, ao contrário das orientais, espacializou o sagrado ao colocá-lo no exterior do homem. Para essas, o ser humano possui o divino em si cabendo a ele promover seu desenvolvimento espiritual. O que explica o hábito do recolhimento e o emprego freqüente da meditação entre seus seguidores. Para o cristianismo, o espiritual ganha o espaço do mundo. “Mas nenhum lugar era tão sagrado quanto o corpo humano”, o micro-cosmo dos gregos, feito à imagem e semelhança de Deus (17:72). A idéia de um Paraíso abstrato, portanto incógnito, vem reforçar a linha de teólogos e místicos que o concebiam no interior de cada homem.

A viagem a ser feita para alcançar o Paraíso não será longa em percurso, pois afinal ele está bem próximo de cada um. Nem por isso será fácil a travessia.

A nostalgia do Éden, a procura por um lugar que não existe, a invisibilidade do Paraíso foram perdas severas para a humanidade. Se a ciência demonstrou que o céu e a terra pertencem ao mesmo universo, sujeito às mesmas leis (15:507), o Paraíso passou a ser visto como uma utopia, um não lugar, na acepção etimológica da palavra, até mesmo uma ucronia, um não tempo. Tal como ouviu Fernão Capelo Gaivota do velho a quem indagava ansioso se havia chegado ao Paraíso: “O Paraíso não é um lugar, nem um tempo. O Paraíso é ser perfeito” (3:90).

A perfeição é um ideal cristão a buscar. Se é uma utopia e a ela não se vai, sem ela não se vive. O caminho a seguir é um não caminho. Uma errância espiritual. Desprendida, feita de perdição e abandono. A desorientação de São Brandão, quando os monges sequer enxergavam uns aos outros em meio à forte cerração, foi que os levou ao Paraíso. A lição consta do evangelho nos magistérios de Lucas e João. Está em Lucas (Lc 9:23): “Pois qualquer que quiser salvar sua vida perdê-la-á”, e em João (Jo 12:25): “Quem ama sua vida perdê-la-á.”

Sejamos pois esses errantes espirituais, almas vagabundas, como os “marivagi” (errantes do mar) na expressão de Benedeit a propósito de São Brandão e companheiros de aventura, perdendo-se para acharem-se, vivendo para morrer, morrendo para viver. Divina errância, ser e devir, repouso e movimento, “viagem na qual nasce o próprio viajante” (9:31). Pelo prazer de “embarcar, embarcar sempre, acreditando cada vez menos nos portos de chegada” (9:31) como preconiza mestre Agostinho da Silva.

Afinal, o que foi mesmo que restou do Paraíso, qual o espólio dessa maravilha que encantou a humanidade durante séculos? Concluo com Jean Delumeau, autor da pergunta, no fecho do seu livro: “À pergunta, a fé cristã continua a responder / - Graças à ressurreição do salvador, um dia todos nós nos daremos às mãos e nossos olhos verão a felicidade!”

Só outro mistério explica um mistério!


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UMA EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

Este texto constitui uma tentativa de organizar informações colhidas em fontes secundárias respeitáveis sobre essa aventura mística medieval de São Brandão, como nasceu e prosperou ao longo de séculos. Não tem, portanto, a pretensão de ser original nem de esgotar o tema. Fica como um estímulo aos que atraídos pelo assunto, queiram nele aprofundar-se.

Os números entre parênteses indicam, o primeiro, a obra que consta da bibliografia, e o segundo, a passagem dela citada.


BIBLIOGRAFIA



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