Excelente o artigo de CONTARDO CALLIGARIS, publicado hoje na Folha de S. Paulo sobre as crianças apátridas.
Psicanalista, doutor em psicologia clínica e colunista da Folha de S. Paulo, Calligaris, que é italiano, vive e clinica entre Nova York e São Paulo. Leitura obrigatória semanalmente na Folha.
Para os migrantes, cada um é responsável não só pelos conterrâneos mas por todos, mundo afora
AO NASCER, a gente pertence a uma nação por um destes dois princípios jurídicos:1) pelo direito de sangue, sou francês ou alemão porque nas minhas veias corre sangue francês ou alemão, ou seja, tenho a nacionalidade de meus ascendentes; 2) pelo direito de solo, sou brasileiro ou norte-americano porque nasci no Brasil ou nos EUA, seja qual for a nacionalidade de meus pais -aliás, mesmo que minha mãe estivesse apenas passando por lá, por acaso, no dia do parto. O direito de solo é típico das nações americanas, cuja origem é, em grande parte, migratória: nas colônias, era urgente que os descendentes dos imigrantes transformassem a terra (com a qual seus pais tinham sonhado) num país.
O direito de sangue é típico das nações européias, que atribuem sua unidade à história e à tradição cultural. Presume-se, portanto, que, para fazer de mim um francês, um italiano etc., o legado de meus ascendentes seja mais importante do que o endereço em que nasci. A grande maioria das nações americanas, sobretudo uma vez consolidadas, adotaram uma mistura dos dois princípios. Por exemplo, qualquer um que nasça nos EUA é cidadão dos mesmos, mas isso é também o caso dos filhos de americanos nascidos no exterior. Sobrou um resto da primazia originária do direito de solo: só pode ser presidente quem viu a luz no território nacional.
Pois bem, uma reportagem de Vinícius Queiroz Galvão, na Folha de domingo, revelou que uma emenda constitucional de 1994 criou uma situação bizarra: toda criança nascida de pais brasileiros no exterior está no limbo, pois sua nacionalidade brasileira é condicional. A criança será brasileira só se, um dia, residir no Brasil e optar pela nacionalidade brasileira perante um juiz federal (processo que, em São Paulo, leva sete anos). Difícil saber se a dita emenda foi votada por imperícia ou por espírito de galinheiro. Seja como for, a brincadeira afeta 200 mil filhos de brasileiros no estrangeiro; os (numerosos) assessores de deputados e senadores poderiam ter previsto esse efeito da emenda e também considerado seu custo psicológico. Um caso.
Imagine um casal de emigrantes brasileiros "não-documentados" nos EUA; um dia, eles têm um filho que é, pelo direito de solo, norte-americano. O menino fala inglês perfeitamente (como o nativo que é). É ele que acaba introduzindo os pais à nova cultura, numa estranha inversão, como se eles fossem as crianças. Além disso, o menino é o porta-voz de uma nação à qual os pais querem se integrar, mas para a qual são ilegais. Nessa situação, para que os pais mantenham alguma autoridade simbólica sobre o filho, é preciso que a cultura brasileira de origem continue sendo um valor para os três (pais e filho), pois é enquanto brasileiro que o menino poderá ser filho (e não, paradoxalmente, pai) de seus genitores.
Ora, com a emenda de 1994, os pais sequer podem transmitir ao filho sua nacionalidade. Uma consolação: talvez a patologia das migrações seja um resto do passado (um resto que persiste); talvez a verdadeira patologia seja hoje a sobrevivência das identidades nacionais. Conheci, pouco tempo atrás e graças a um leitor, a obra de Vilém Flusser, morto em 1991, filósofo e ensaísta, judeu e tcheco, que fugiu de Praga em 1939, viveu no Brasil de 1940 a 1972 e foi, enfim, para Alemanha e França. Flusser escreveu uma interessante "Fenomenologia do Brasileiro" (ed. UERJ).
Para conhecê-lo, recomendo "Bodenlos - Uma Autobiografia Filosófica" (Annablume 2007) e uma dissertação de mestrado na ECA, de Ricardo Mendes (www.fotoplus.com/flusser). Em "The Freedom of the Migrant -0Objections to Nationalism" (a liberdade de quem migra - objeções ao nacionalismo, University of Illinois, 2003), Flusser faz do migrante, do apátrida, o emblema da modernidade. O migrante é aquele que não precisa mais da casa que perdeu; sua morada não é um país nem uma cultura: ele está em casa no exílio, pois é no exílio que aparece a universalidade da inquietação moral moderna. O internacionalismo proletário marxista, assim como a globalização capitalista, talvez seja apenas epifenômeno fracassado do universalismo cristão que fundou a cultura moderna: somos indivíduos, sem morada fixa, e por isso mesmo cada um de nós é responsável não apenas por seus conterrâneos mas por todos, mundo afora.
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