quinta-feira, 4 de setembro de 2008

Ibiapaba


Compartilho com vocês esta bela descrição da Ibiapaba, que está no livro PADRE ANTÓNIO VIEIRA - A Missão de Ibiapaba. Editora Almedina. Coimbra. Julho de 2006.

Descrição do sítio da serra de Ibiapaba: sua dificultosa subida; sua altura que excede às nuvens.

Ibiapaba, que na língua dos naturais quer dizer terra talha, não é só uma serra, como vulgarmente se chama, senão muitas serras juntas, que se levantam ao sertão, das praias de Camuci, e mais parecidas a ondas de mar alterado que a montes, se vão sucedendo e como encapelando umas após das outras, em distrito de mais de quarenta léguas. São todas formadas de um só rochedo duríssimo, e em partes escalvado e medonho, em outros coberto de verdura e terra lavradia, como se a natureza retratasse nestes negros penhascos a condição de seus habitadores, que, sendo sempre duros e como de pedras, às vezes dão esperanças e se deixam cultivar.

Da altura destas serras não se pode dizer cousa certa, mais que são altíssimas e que sobe as que o permitem com maior trabalho da respiração que dos mesmos pés e mãos, de quer é forçoso usar em muitas partes. Mas depois que se chega ao alto delas, pagam muito bem o trabalho da subida, mostrando aos olhos um dos mais formosos painéis, que por ventura pintou a Natureza em outra parte do Mundo, variando de montes, vales, rochedos e picos, bosques e campinas dilatadíssimas, e dos longes do mar no extremo dos horizontes. Sobretudo, olhando do alto para o fundo das serras, estão se vendo as nuvens debaixo dos pés, que como é coisa tão parecida ao Céu, não só causam saudades, mas já parece que estão prometendo o mesmo que se vem buscar por estes desertos.

Os dias no povoado da serra são breves, porque as primeiras horas do Sol cobrem-se com as névoas, que são contínuas e muito espessas. As últimas escondem-se antecipadamente nas sombras da serra, que para a parte do Oceano são mais vizinhas e levantadas. As noutes, com ser tão dentro da zona tórrida, são frigidíssimas em todo ano, e no Inverno com tanto rigor, que igualam os grandes frios do Norte, e só se podem passar com a fogueira sempre ao lado. As águas são excelentes mas muito raras, e a essa carestia atribuem os naturais ser toda a serra muito falta de caça de todo género.

Um comentário:

Célio Ferreira Facó disse...

Notável no estilo quinhentista a sintaxe, que se estende por períodos compostos já pela coordenação, já pela subordinação. Tão elaboradas composições não dificultam, porém, o entendimento nem forçam a atenção de quem lê. Parecem naturais como o ritmo do falar cotidiano. E deixam ver, ampliadas, as belezas do vernáculo, hoje tão maltratado, sobretudo pela imprensa, que se abandona a modismos tolos, às vezes completamente estrangeiros. Este estilo sofisticado e o respeito à forma sobreviveram bem até o romantismo. Dele tem-se exemplo em Frei Luís de Souza, Aluísio Verney, João de Barros, p. ex. Clareza meridiana, hoje quase irreconhecível na tendência atual de escrever o idioma, que manda fazer períodos pequenos e quer ser muito transigente com desrespeitos à Gramática.