sexta-feira, 11 de julho de 2008

Aspectos médicos na obra de Machado de Assis

Comemora-se este ano o centenário de morte de Machado de Assis. A propósito da data organizam-se eventos, aqui e alhures, na intenção de refrescar nos interessados o conhecimento da vida e obra do grande escritor. Vida sofrida e obra extensa, já tendo demandado a atenção de muitos estudiosos cujas aproximações renderam qualificadas análises de sua trajetória pessoal e literária.

Convidado a colaborar com este ciclo de palestras oportunamente organizado pela Academia Cearense de Letras ocorreu-me dissertar sobre aspecto menos conhecido do autor, qual fosse sua doença, a provável influencia que teve em sua produção, bem assim a forma como abordou, nas diferentes expressões literárias que praticou, a medicina. Ou melhor, os médicos e os remédios, a doença e os doentes. Surpreendeu-me o número de trabalhos valiosos em torno do tema, uns incompletos, outros superados pelo tempo e o avanço da ciência, conflitantes alguns, ou ainda marcados pela subjetividade especulativa infiltrada nos diagnósticos retrospectivos amparados em material escasso e impreciso. Minha tarefa será mais a de ordenar essas apreciações, podando excessos, acrescidas, onde couber, de impressões pessoais.

Todo esforço para entendê-lo, e sua obra, depara-se com o pouco que se conhece de sua infância e adolescência, bem como as pistas labirínticas que semeou em seus escritos a desafiarem investigadores diligentes que sobre elas se debrucem.

Mestiço, filho de pais pobres, criado na periferia das casas grandes do morro do Livramento, valeu-lhe o zelo da segunda mãe para garantir-lhe o aprendizado básico sobre o qual ergueria um monumento de cultura e erudição, como autodidata que foi. Sobre esse início, que lhe marcaria a caminhada, deita véu de silêncio, corta amarras com o passado. Aos poucos ascende socialmente, freqüenta a livraria de Paula Brito, ponto de encontro de literatos e políticos, ingressa no serviço público, inicialmente como tipógrafo da Imprensa Nacional, começo de longa carreira na burocracia. Acerca-se das rodas literárias, aceito entre adultos de reputações estabelecidas, vislumbrado seu talento e interesse pelas letras. Estão dadas as condições para o início de uma brilhante carreira a ser feita com a superação de obstáculos derivados da origem humilde e de limitações físicas que fizeram seu tormento e alimentaram sua criação.

Claude Bernard disse que um dia o psicólogo o poeta, e o fisiólogo, falariam a mesma língua e todos se entenderiam. A frase sugere a conexão entre a escrita e a personalidade do autor. O fruto do seu trabalho, é o reflexo de sua formação (“o menino é o pai do homem”, diz Machado), inclinações, vivências, sofrimentos. E, claro, do estado mórbido do espírito. A esse estudo, deu-se o nome de patografia. Vários autores investigaram essas relações na tentativa de explicar a obra a partir da doença do autor. São conhecidos entre outros, os trabalhos de Moebius, W. Lange e Jaspers sobre Holderlin, Goethe, Van Gogh, Strindberg, Nietzsche.

Interessa-nos aqui o caso de Machado de Assis. Epiléptico comprovado, ocultava sua doença numa referência vaga a “umas coisas esquisitas quando criança”. Até surgir o acesso público, em pleno Cais Pharoux, à espera de Anatole France, documentado em foto, para surpresa de Carolina, sua mulher, que então ignorava fosse portador do mal. Imagine quão vexado terá ficado Machado face à humilhação sofrida. O temor da irrupção das crises, frustras na forma das ausências, mencionadas em correspondência à Mario de Alencar, ou das manifestações clássicas convulsivas, precedidas por auras, induziram hábitos e traços do temperamento, determinantes do seu comportamento social. Arredio, taciturno, gago, com amigos, mas pouquíssimos íntimos (Mário de Alencar, Quintino Bocayuva, Magalhães de Azeredo, José Veríssimo, e mais uns poucos), não teve “amigo que fosse mais que simples relação intelectual”. A timidez, a tendência associativa manifestada pelo convívio nos grupos literários de que a Academia Brasileira de Letras é o maior exemplo, o retraimento, a impulsividade, compõem o temperamento gliscroide típico do portador de epilepsia. A que se associou um comportamento esquizóide, conforme Peregrino Junior.

É nítido nele o pudor da doença. Como Flaubert, igualmente acometido do mal comicial, não ousa dizer seu nome. Quando faz alguma referencia a ela menciona-a de forma indireta tal em cartas à Mário de Alencar e José Veríssimo. “O muito trabalhar nos últimos dias tem me trazido alguns fenômenos nervosos”, dirigindo-se à Mário, e para Veríssimo “...era ontem dia marcado e hoje também, mas ontem os destinos o não quiseram, estive doente e recolhi-me logo”. Uma única vez, relata Peregrino Junior, surpreende referencia direta a moléstia em missiva para seu grande amigo Mário de Alencar, colega de infortúnio, junto com Magalhães de Azeredo, os três autores das cartas tristes (Samantha Valério), cúmplices na doença: “A minha saúde não vai mal, exceto o que lhe direi adiante, e não é a ausência que senti ontem, esta foi rápida, mas tão completa que não me entendi ao tornar dela. Daí a pouco entendi tudo e deixei-me estar”. Em mais uma carta ao querido amigo Mário confidenciava: hoje à tarde reli uma página da biografia de Flaubert; achei a mesma solidão e tristeza, e até o mesmo mal, como sabe, o outro. Note-se datarem dos seus últimos anos de vida, quando o mal recrudesce, e se tornam freqüentes as crises. Dissimula os sinais da doença reportando-se às feridas na língua, decorrentes de mordeduras comuns nos ataques convulsivos, como aftas. Aliás, para evitá-las, Carolina costumava portar rolhas que introduzia na boca do marido por ocasião dos ataques.

Enquanto escondia a epilepsia falava em cartas, e mesmo em crônicas, de outros males que o perseguiam. Aos distúrbios intestinais chamava de mal acessório, e com eles se preocupava ao ponto de confessar melancólico em carta à Carlos Leopoldo de Almeida, “vou caminhando para uma tísica mesentérica”. Queixava-se pelos jornais de incômodos e enxaquecas que lhe abatiam o ânimo e subtraiam-lhe forças para o trabalho intelectual. Míope, temia perder a visão. Quando o mal ocular agravava-se era Carolina que lia os textos em voz alta. Aliás, no decantado soneto que lhe dedicou menciona os “olhos mal feridos”. Hermínio Brito Conde, em “A Tragédia Ocular de Machado de Assis”, atribue ao desajuste do pince-nez e seu uso incorreto, a causa das dores de cabeça e indisposições costumeiras. De fato, as lentes destinavam-se à visão próxima, todavia portava-as permanentemente o que de certo lhe turvava a vista. Teria carecido também de lentes corretoras para longe, mas nunca as teve.

Ao contrário de Dostoievski, que narrou em detalhes e com precisão clínica seus acessos epilépticos, também presentes em alguns de seus personagens (“Possessos”, “O Idiota”), Machado omite-os completamente de seus livros. Na primeira versão de Brás Cubas emprega a palavra epilepsia, para permuta-la em seguida por convulsão. Chega ao cúmulo de, ao traduzir do francês o livro “Notions d´hygiene à l´usage des instituteurs primaires”, do Professor T. Gallard, eliminar do texto a epilepsia e outras doenças. A omissão enojada não suprime as sensações que a moléstia desperta capazes de inspirar cenas memoráveis como a do delírio de Brás Cubas.

Basta ver que Dostoievsky, citado por Stefan Zweig, compara a delícia do instante que precede a crise epiléptica à visão do paraíso. Apesar da notória ojeriza a qualquer referência a doença há quem enxergue passagens em seus livros que signifiquem sinais da enfermidade. Cito o grito e a perda de consciência de Rubião ao assistir o enforcamento de um negro, e o conto “Um Cão de Lata ao Rabo” e o poema “Suave Mari Magno”. No conto narra um embate entre o cão e o furacão. Luta tremenda, entre o animal e a força da natureza, assistida pelo destino, cujo desfecho é um estrondo a assinalar a vitória do cão. O mínimo derrubara o máximo, na expressão do autor. O cão bem poderia ser o homem, a tormenta a doença inexorável. Na poesia, um cão, mais uma vez, ferido pela luz, debate-se na rua sob a indiferença dos transeuntes. A doença que lhe repugnava, teria transferido ao animal amigo para desabafar tragédia que era sua.

“Suave Mari Magno”

Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.

Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.

Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,

Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.

(Ocidentais, in Poesias completas, 1901.)

Morrer e renascer esta é a dinâmica das crises que o aproxima da morte e o ensina a teme-la.
O automatismo ambulatório, peculiar aos epilépticos, também freqüenta a narrativa de Machado em vários de seus livros, de novo o hábito da repetição. Fiquemos com dois exemplos. “Quincas Borba”, Rubião: “deu por si na praça da constituição. Viera andando a toa”. E Brás Cubas, nas “Memórias Póstumas” – “...iam-me as pernas levando, ruas abaixo, de modo que insensivelmente me achei a porta do hotel Pharoux. De costume jantava aí; mas, não tendo deliberadamente andado, nenhum merecimento da ação me cabe, e sim às pernas que a fizeram”.

O Nicolau de “Verba Testamentária” apresenta traços bem sugestivos do epiléptico. É mais uma insinuação do autor sobre a ocorrência da moléstia sem nunca assumi-la de público. Cabe-nos agora examinar como a doença mudou seu comportamento e interferiu em seu estilo. A saber, o que deve seu estilo límpido, coloquial, polido (Amina di Munno) sem exacerbações eróticas, ou violências, a um temperamento moldado por uma doença incurável, sorrateira, que incidia sobre ele “como um raio em céu sereno” (Aloísio de Castro). Deriva daí seguramente muito do ceticismo, do pessimismo niilista induzido pela revolta do apenado pela natureza vazada de forma sutil, mas acre, nos seus textos, particularmente os mais famosos, de sua última fase.

Acrescente-se à essas expressões amarguradas de uma alma torturada pela pobreza o preconceito (lembre-se a oposição da família de Carolina ao casamento por ser mulato) e a doença, o humor fino burilado na leitura dos ingleses, Sterne e Swift, e ter-se-á o fundamento sobre o qual construiu seu incomparável estilo. A afetividade viscosa, a prolixidade, o gosto pelo detalhe, a minúcia, a reiteração continuada, uma certa misantropia, a depressão que segue às crises, traços do epiléptico, desenham o cotidiano de Machado de Assis e transbordam em sua criação literária. É ele quem confessa: “Eu gosto de catar o escondido. Onde ninguém mete o nariz, ai entra o meu, com a curiosidade estreita e aguda que descobre o encoberto (...) a vantagem dos míopes é enxergar onde as grandes vistas não pegam”. A ambivalência, a indecisão, a dúvida, a hesitação, o ciúme, assomam em seus livros a marcarem fortemente seus tipos humanos. Machado é isto e aquilo, e não isto ou aquilo, à maneira dos esquizóides, segundo Kretschmer, citado por Peregrino Júnior. Morre e assopra, fere delicado. Tem certo enjôo do homem, a descrença nele, confessada à Mário de Alencar ao explicar-lhe a motivação para escrever Brás Cubas, livro que assinala seu transito do romantismo para o naturalismo à sua feição. Contido, subjetivo, sem os excessos de Eça, que condenava, e sem a ciência de Zola. Retrato sutil das vilezas colhidas no recesso profundo das almas e dissecadas com perícia de anatomista.

Esses atributos de sua constituição, associados aos pródromos de sua existência fizeram-no um homem temeroso, com medo da vida, receioso de contrariar pessoas, avesso a polêmicas, com tédio a controvérsia, mas mordaz na crítica, irônico, conservador, disciplinado, amante da lei e da ordem. Obsequioso, quase servil, no auge da glória chegou a dizer de seu ímpeto em beijar os pés do ministro que o reintegrou ao serviço público. Temeroso, viveu com medo da vida.
O crítico literário Luiz Costa Lima crê estarem equivocados os que sustentam a análise da obra de Machado em aspectos exclusivamente biográficos do escritor, considerados insuficientes para explicá-la. Para desvelar o palimpsesto da escrita machadeana, ou seja, aflorar o universo psicológico da condição humana, disfarçado no estilo anódino, será preciso buscar outras vertentes explicativas. Identifica três linhas de investigação levantadas na tentativa de compreender o pessimismo que perpassa vida e obra do escritor. Segundo o crítico, Silvio Romero di-lo pessimista, por ser distante do povo; para os filiados à corrente psiquiátrica, explica-o a epilepsia; já Alfredo Pujol e Lúcia Miguel Pereira, creditam-no à descrença na vitória da moral. Arrisco pensar que não haja resposta única para a indagação. As três hipóteses convergem, não se excluem. Torna-se difícil aferir preponderâncias que justificassem dominâncias indutoras da atitude pessimista. Restrinjo-me aqui à natureza psiquiátrica do problema no âmbito da minha comunicação de hoje. Neste caso a doença foi indiscutivelmente ponto de partida.

Peregrino Júnior, em “Doença e Constituição de Machado de Assis” identificou marcas de sua personalidade atribuídas à epilepsia que despontam em passagens de sua vida e em seus textos. Aludo à algumas delas que me pareceram mais representativas da tese proposta.

Assim, quanto a afetividade untuosa com os poucos amigos, subjacente à conduta reservada aparente, a ironia constante a insuspeita meiguice epistolar (“vesícula de fel da sua filosofia social, mas suas cartas o traem”, em correspondência que lhe dirigiu Joaquim Nabuco) A amabilidade com que tratava os próximos, garantidora de assistência em caso de crise, convivia com impulsos explosivos próprios da ciclotimia dos epilépticos. Eles são, na imagem de Franco da Rocha como “plantas solanáceas, veludosas por cima, crivadas de espinhos por baixo”.

A ambivalência que já o identifica, ao mesmo tempo como modesto e ambicioso, ressurge em muitos episódios e tipos dos seus livros. Companheira da hesitação que comparece em seus romances junto à ambigüidade feminina. Nunca afirma taxativo o caráter do personagem. Pratica uma espécie de perversidade suave com suas crias como se deixasse ao leitor a tarefa de julgá-las. Prefere a nuance ao tom forte das cores bem definidas. O comportamento ambíguo de Capitu, a vacilação de Flora em Esaú e Jacó cujo coração balança entre os gêmeos; Brás Cubas, todo ambivalência, a hesitação quanto ao valor da recompensa no episódio do almocreve, são parcelas do vasto painel que traçou do grande enigma que é a natureza humana.

Hábitos sedimentados e o apego à rotina que parecem reduzir sua insegurança face à imprevisibilidade da doença, levam-no à restrição do território onde se movimenta e a repetição de itinerários, costume reproduzido no que escreveu. Está em “Ressurreição:” os meus dois pólos estão nas Laranjeiras e no Largo do Paço; nunca passei desses dois extremos do meu universo-confesso que é monótono, mas eu acho felicidade nesta monotonia.

A prolixidade, associada à iteração, encontradiças nos epilépticos, são também visíveis no estilo de Machado apontado por alguns como enfadonho e maçante. Responde aos críticos que condenam o cacoete da repetição dizendo que seu farnel é feito de três ou quatro assuntos que alimentam sua criação. Abusa das explicações em “Relíquias da Casa Velha” e estende-se discorrendo sobre a genealogia de Brás Cubas. Ao longo de sua obra repete nomes, cenas, episódios. O atropelamento da criança pelo carro está em “Trio em Lá Menor” e em “Quincas Borba”. Pouco afeito à natureza e à descrição de paisagens (“Deslocou da natureza para o homem o interesse intelectual”, bem o disse Alceu Amoroso Lima) fe-la por três vezes, em “Quincas Borba”, “Páginas recolhidas”, “Histórias sem Data”, do trecho da Praia Formosa e Saco dos Alferes, evoca constantemente o mestre escola; alude com freqüência ao sucesso das divas do teatro lírico; repisa o elogio do tolo e da tolice. O ciúme, filho do demônio da dúvida, incrusta, magistral, iterativo, na alma dos personagens, entre outros, os de “D. Casmurro”, “Ressurreição”, “Falenas”, “Memorial de Ayres”. A fixação em partes do corpo feminino repetida à exaustão, manifesta uma sensualidade fetichista sugestiva de complexo freudiano expresso na dificuldade que tem na abordagem feminina. Carolina foi, no sentido real, sua primeira e única mulher. Descartadas duas eventuais incursões platônicas. Braços, olhos, e cabelos, chamam atenção em suas heroínas numa atmosfera de delicada sensibilidade e sutil lascívia.

São os braços de Virgília, da Conceição da “Missa do Galo”, do conto “Uns braços”; os consagrados olhos de ressaca de Capitu e na mesma personagem outros menos famosos; de convite e de estrela em Virgília, e olhares intumescidos de volúpia.

Infidelidade e loucura, anotou Gustavo Corção, são temas recorrentes na obra de Machado de Assis. Cuidou da loucura de dois modos. Primeiro sem o clima trágico, com humor fino e ironia para desmitifica-la. Mais tarde, apresentou-a sob a forma cruel da decadência demencial que rebaixa e avilta o ser humano. Pertencem à esta fase Quincas Borba e Rubião. Nas duas abordagens utiliza a loucura para fazer a crítica da sociedade, denunciar imposturas e vilezas, a manipulação do poder, a hipocrisia, os dogmatismos, a presunção da ciência. Exala ceticismo, duvida dos sãos, desconfia dos médicos, desdenha dos remédios, é tolerante com a medicina popular, apóia a proposta gaúcha de dispensar de cursos oficiais os que pretendam praticar a medicina.

Nas crônicas não faltam assuntos médicos, inspirados na agenda do dia, comentados com saboroso sarcasmo. Discorre sobre o regime lácteo destinado aos marujos, a braços com a desnutrição dos embarcados, para atingir o cirurgião mor da armada. A propósito da inauguração de uma unidade de dosimetria em hospital do Rio de Janeiro brinca com as imagens para ridicularizar a tecnologia. Fala de curandeiros, e suas poções milagrosas, citando Plínio, o velho, para dizer que a sedução da esperança ignora o perigo e confia o paciente ao que promete a cura. Denuncia o erro de manipulação da fórmula que mata envenenadas duas meninas em Niterói com a afirmação cínica de que é preciso ter matado cincoenta para salvar mil criaturas. Critica neologismos, para escorado na semântica queixar-se do nasóculo que lhe aperta o nariz. Comenta a prisão do curandeiro Tobias com certa simpatia pela atividade, precursora da medicina.

Descreve, mordaz a genealogia que dá o curandeiro por pai de Hipócrates, logo avô de seu sobrinho que estuda medicina, portanto seu tio. Por último destaco a crônica que noticia a fuga dos loucos do hospício Pedro II para elogiar-lhes a indústria que tiveram para organizar a evasão ao tempo em que julga impossível distingui-los entre os passantes, tal a semelhança entre os que estão dentro e fora do manicômio. Acredita-se que o fato inspirou-lhe “O Alienista”. O episódio deu-lhe azo a expor o ponto de vista sobre a fluidez dos limites da razão e a fragilidade classificatória endeusada pelo entusiasmo com a ciência. Idéia a ser desenvolvida no conto consagrado que antecipa a antipsiquiatria, surgida quase cem anos mais tarde, vanguarda da psiquiatria no combate à opressão terapêutica confinadora e no compromisso com a humanização da loucura. Simão Bacamarte pesca almas e caça loucos, classifica e interna, desclassifica e solta, interpreta o poder absoluto da ciência, confronta e pondera, concilia com o poder político representado pelos vereadores liderados por Porfírio, impõe normas que estabelecem privilégios, financia seu desvario com o imposto instituído sobre os penachos dos féretros. Escolhida com base na ciência a esposa nega-lhe a prole planejada, mas a culpa do fracasso cabe à carne de porco de Itaguaí. “O Alienista”, mais que uma crítica ao tratamento reservado aos loucos, é uma forma de ver o mundo, encarar os limites da ciência, vasculhar a alma humana, compreender o comportamento das pessoas em sociedade. Bacamarte desconfia que a loucura seja um continente, e não uma ilha como imaginara a princípio, e o perfeito mentecapto o mais equilibrado e virtuoso dos homens. Isolado na Casa Verde vazia onde a vem a falecer Bacamarte é a síntese de sua teoria e da prática ao se descobrir o único alucinado. Arrebatara em sua carreira de cientista o troféu do nada.

A galeria de loucos de Machado se espalha por outros contos, integrada por perfis diversos de insensatos com manifestações muito específicas. É o caso do paciente do Dr. Jeremias Halma, no conto “O Lapso”, portador de amnésia seletiva que o faz esquecer de saldar dívidas. Curado, resta-lhe o médico como único credor; ou o doido de “Segunda Vida”, que renasce desconfiado e aprendido dos homens e das coisas; ou ainda o sádico de “Causa Secreta”, e “O Enfermeiro” torturado pelo remorso que aplaca com a herança de sua vítima. Que é a teoria de Jacobina, exposta em “O Espelho. Esboço sobre uma nova teoria da alma humana”, a propósito da existência de duas almas em um mesmo ser, uma que olha para fora, outra que olha para dentro, uma laranja e suas duas metades, metafisicamente falando, como diz, senão uma metáfora da esquizofrenia? Imagem que reitera em “As Academias de Sião” incumbidas de responderem à pergunta se a alma é neutra ou sexual e portanto se a alma de um, estando no corpo de outro, explica a conduta homossexual.

Na constelação de insanos construída por Machado há as estrelas de primeira grandeza. São seus loucos egrégios, Brás Cubas, Quincas Borba, Rubião, surgidos os três na fase endiabrada do escritor emerso do casulo de espírito recatado. Foi-se o romântico, sucede-o o naturalista. Muda o tratamento dados aos loucos e à loucura. Abandona a leveza de aparência, bem humorada, para encarar a face cruel da triste loucura de Quincas Borba, decaído e humilhado. Nos últimos anos de vida a doença se agrava, amiúdam as crises, acentuam-se o pessimismo e a melancolia. Data desta época o registro que fez das crises e perturbações psíquicas que sofria para submetê-lo à Miguel Couto, seu médico. Nem no canhenho, onde faz uma auto análise e transparece o instinto da morte escreve o nome da doença. Leme Lopes supõe, a partir desses relatos que Machado além das convulsões padecesse de manifestações oniroides paroxisticas e alucinações auditivas, turvação da vista e deformação de objetos compatíveis com o diagnóstico de epilepsia temporal. Seriam os “laivos de loucura” de Machado a que alude Gustavo Corção.

O delírio de Brás Cubas é pagina antológica da literatura mas não é desprezível seu aspecto médico. É o próprio doente a descrever suas sensações, certo de em assim procedendo dar grande contribuição à ciência. De fato precede experiências posteriores de psiquiatras que provaram da mescalina, da maconha e outros alucinógenos fazendo viagens de investigação da consciência. Com a fusão do sujeito e objeto aplica o método fenomenológico de Jaspers antes que exista. Convém assinalar que o delírio de Cubas surge na fase pré-agônica, no curso de processo infeccioso pulmonar caracterizando estado oniroide, uma psicose onírico confusional.

Curioso observar que Brás Cubas e Quincas Borba suspeitam reciprocamente de doença. O alienista chamado atesta a sanidade de Cubas. O doente é o outro, pois “moléstia e saúde são caroços do mesmo fruto” afinal, diz, “a loucura entra em todas as casas”, para concluir com erudição sentenciosa “jura falso, quem jurar não possuir dois ou três patachos” (alusão ao vesânico do Pireu, Trasilau, dono imaginário de todos os navios que, está em Camões, “Oitava redondilha-A D. Antonio de Noronha, sobre o desconcerto do mundo”).

O “grãozinho de sandice” surpreendido pelo alienista em Borba haveria de crescer e resultar em frutos amargos da insânia. Estávamos diante de uma personalidade anormal que desenvolve paranóia, acredita Leme Lopes. E mais tarde um paranóide que desenvolve uma filosofia, o humanitismo. Mistura alinhavada com idéias científicas, a morte que dá a vida (Bichat), a dor como predisposição, que antecipa a doutrina dos reflexos condicionados, e disparates intrigantes, tudo cozinhado junto às batatas do vencedor na teoria das bolhas ferventes. Em carta à Rubião julga-se Santo Agostinho e reconhece-se “louco não havia dúvida, estava doido mesmo”. Acelera na ladeira da decadência para as profundezas da alienação que isola e confina e o faz morrer antes de morrer até o ponto final do obituário lacônico: “já delirava antes de morrer”.

Rubião, seu epígono, herdou-lhe o dinheiro e o destino. Sem ser médico, Machado de Assis descreve em seus passos insanos a evolução dolorosa da paralisia geral, doença então causa freqüente das internações no manicômio do Rio de Janeiro. Os distúrbios, de atenção, a prodigalidade, o esbanjamento, a hesitação em decidir coisas triviais e mais adiante a megalomania desinibida manifestada aos convivas nas mesas fartas. Era Napoleão III, que ora desfilava pelas ruas conduzindo pelo braço a imperatriz Eugênia, ora comandava generais gauleses derrotados em batalhas reais, vitoriosos em sua ficção alucinada. Perde a autocrítica, a memória falha, o discernimento se reduz, a capacidade intelectual se deteriora. A doença avança.

Pede ao barbeiro corte à feição de Luis Napoleão enquanto mira o espelho que reflete a esquizofrenia, “era o outro; era ambos, era ele mesmo em suma”.

À penúria mental que divertia os circunstantes segue-se a miséria material e o abandono dos amigos. Da casinha modesta para a casa de saúde com a promessa de cura é um salto. A fuga, em companhia do cão, para Barbacena, é o apogeu do desatino, o encontro com a morte nos braços da comadre que guardara Quincas Borba, o cão, fiador de sua herança.
Despede-se da vida coroando-se, “pegou em nada, levantou nada, cingiu nada”. Estava assinada a abdicação, decretou Machado. É episódio de humorismo pungente (Corção), de doloroso ridículo, lágrima e riso, o trágico e o cômico, faces de Janos do estilo de Machado. Situação na qual o engraçado é desgraçado. À esse niilismo, machadeano que, impregna sua escrita, Lúcia Miguel Pereira chamou de obsessão do nada, a “voluptuosidade do nada” na expressão do autor. O nada que o seduz e atrai até o termo da existência figurada no Prometeu Acorrentado:


... frio, inerte, ao abismo um corpo morto rui;
Acabara o suplício e acabara o homem.
(O desfecho, em Ocidentais)

Da celeuma desencadeada pelos acontecimentos políticos da abolição e da república, Machado de Assis guardou cautelosa distância de zeloso burocrata. A conduta grangeou-lhe a fama de insensível social e alienado político. O século XIX foi marcado pelo progresso da ciência e fé sem limite em seus postulados. No Brasil, adeptos de Augusto Comte embalavam essa confiança ao propagar com êxito o positivismo junto aos militares e membros da elite do país. A teoria da evolução das espécies ganhava força a partir da divulgação dos trabalhos de Charles Darwin. Estava aí à sua disposição material farto a desafiar-lhe o senso crítico infenso aos atropelos da modernidade. Se nunca doutrinou é que não aderiu a credos ou filosofias. Talvez por isso criou a sua, que deu a conhecer pela boca de Quincas Borba, humanitas. O humanitismo seria machadismo, síntese da ironia psicológica e da resignação filosófica do escritor enxergado com vidros de aumento que ressaltam tópicos inverossímeis (Américo Valério, em A Psicanálise de Machado de Assis). Humanitismo é uma caricatura de Comte e da doutrina positivista. Segundo Eloy Pontes, por desconhecê-la, sai constrangida, superficial e confusa. Ao admitir a transferência dos caracteres adquiridos incorpora à sua filosofia a teoria de Darwin. Promete ainda dota-la de uma liturgia que a transforme na religião do futuro. É neste apostolado que se assemelham ainda mais humanitismo e positivismo. Insurge-se contra o dogmatismo, galgando o cérebro do cônego absorvido na tarefa de conciliar adjetivos e substantivos sediados em hemisférios cerebrais distintos para compor a prédica vazada em estilo metafísico (“O Cônego, ou A Metafísica do Estilo”). No conto “Evolução” faz crítica velada ao evolucionismo, de conteúdo político e social, na figura do deputado e no percurso das idéias que retornam “originais” ao ponto de partida.

Da crítica velada embebida no ácido do humor não fizeram exceção a medicina e os médicos. Descria dos dois, assim da lucidez. Era leniente com a medicina popular enquanto fustigava os doutores com suavidade cáustica. Os médicos são charlatães ou parvos. Como o de Barbacena que desaconselhou a viagem de Quincas Borba ao Rio e assistiu, supérfluo, a agonia final de Rubião, fechando um ciclo de insânia de mestre e discípulo. As vezes são estrangeiros ou egressos de escolas européias mantidos os vínculos que lhes emprestam brilho e reputação. Jeremias Halma, que tem nome curioso, sugestivo das lamentações do espírito, é holandês, dado como meio charlatão, no estilo ambíguo de Machado. Simão Bacamarte estudara em Coimbra e Pádua e correspondia-se com as sumidades do outro lado do mar. Era a constatação do colonialismo cultural e científico e da falta de um centro intelectual nacional (Luis Costa Lima, em “O Palimpsesto de Itaguaí”). Insinua engodo e falta de ética no médico que assiste Rubião e apraza cura “de seis a oito meses”, e, quando da fuga do doente “faltavam dois meses”. O mercenário fixa prazos enquanto dure o que resta da fortuna dissipada.

Avesso a médicos, deles suspeita e afasta-se, desanca-lhes a sapiência e as prescrições. Imita Montaigne, que aprecia. Escreve comédia com o título “Não Consultes Médico” derivado do provérbio grego, “Não Consultes Médico. Consulta alguém que tenha estado doente”. O enfermo execra os médicos em particular os que à guisa de cura mandam-no para a China. Da moléstia grave, “loucura, espírito romanesco e muitos outros”; louco de amor é o que alguns dizem. Os autores divergem. Sara graças ao conselho do provérbio que se revelou mais eficaz que a ciência médica.

A frase de José Dias, o agregado de D. Casmurro, “em todas escolas se morre”, é a crítica as discordâncias médicas e às teorias divergentes, todas impotentes diante da morte. Consegue enfiar a mesma crítica aos doutores ao citar Antonio José da Silva, o Judeu – “ É assim que eu gosto dos médicos especulativos”, numa crônica que tratava do fechamento do comércio aos domingos.

Alfineta José Pereira Rego, Barão do Lavradio, médico da família imperial, Presidente Perpétuo da Academia Imperial de Medicina, autor de trabalhos sobre a febre amarela, tomando por base a freqüência de óbitos causados por “acesso pernicioso fulminante”. Suspeita-se fosse pseudônimo da febre amarela, e a troca, costume dos médicos de atenuar a gravidade mórbida dos fatos.

Falou das escolas, mas ilustrou-as ao distinguir a conduta médica de Simão Bacamarte e Jeremias Halma diante de seus pacientes. Bacamarte segrega os loucos, açula os políticos, excita a comunidade. Jeremias pacifica os credores, estreita o convívio social, concentra-se na reaprendizagem dos rituais, apoiado no uso de remédio. São práticas terapêuticas divergentes que se confrontam lançando luz uma sobre a outra. Um é médico, o outro alienista. Em um caso prepondera o viés psicológico, no outro o psiquiátrico. São as antinomias de Machado, a estratégia da dialética.

Sobre as epidemias discorreu com humor cínico entre as idéias que fazem o conteúdo do humanitismo. Expressou-se assim seu intérprete: duplamente benéfica porque deixa sobreviver o maior número e dá aos sobreviventes a satisfação de serem poupados. Isso rescende a Swift que, “piedoso”, recomendou assarem as crianças para matar fome aos irlandeses.

Desdenha dos remédios, ridicularizando em crônicas as panacéias anunciadas, com seus efeitos universais e resultados infalíveis. Invoca Plínio, o Velho, para justificar a crença nas drogas oferecidas fundada na esperança que consola. O emplasto imaginado por Brás Cubas visa a cura da melancolia mas é sobretudo promessa de fama e fortuna. Um bom pecúlio narra em crônica, fez o farmacêutico de barbas de sua infância que vendia a retalho segundo as posses de cada um remédio líquido e escuro, certamente inócuo, não sabe se preventivo, ou curativo, durante epidemia de cólera. Em seguida indaga irônico: “por que levou o segredo para a sepultura? Por que não imprimiu e distribuiu a fórmula? Agora se tal moléstia cá voltar, teremos de inventar outra coisa, que terá a novidade por si é verdade, mas a velhice também recomenda.”
Descrê do hipnotismo em alta, adotado por Charcot no tratamento da histeria para com fina ironia recomendar aos gatunos o emprego do método nos furtos às pessoas sob a chancela da ciência.

Doente e só, triste, isolado, pressentindo o fim, cede às instâncias de Mário de Alencar, amigo fiel, e consome poções inócuas, elixires e xaropes inofensivos, entre eles a “maravilha curativa”. São lances do último combate à morte que sempre o atraíra e temera como nos dão conta sua obra e as anotações do caderno íntimo. Doente como seus personagens que padecem de enfermidades longas, vagarosas, fatais, sofre em silêncio sem queixar-se ou importunar os amigos. O câncer instalado na língua lembra a frase impiedosa que está em Brás Cubas: “indiferente às virtudes do sujeito o cancro quando rói, rói; roer é o seu ofício.”

É chegado o momento de indagar por que Machado não sendo doutor escrevia como médico. Que conhecimento tinha de psiquiatria? E de saber o que além de sua sofrida vida terá influenciado sua literatura. Um bom caminho para desvendar a questão é conhecer seus autores prediletos e os livros que compunham sua biblioteca. Tem-se como certo ter tido preferências pelos ingleses, Poe, Sterne, Swift, Dickens; Eça de Queirós; os franceses Maupassant, Flaubert, Stendhal, Renan, Merimée, Xavier de Maistre, e mais Schopenhauer que revela em carta estar lendo, mesmo doente e próximo ao fim.

Sua biblioteca foi adquirida aos herdeiros, pela Academia Brasileira de Letras e para lá removida decorrido certo intervalo até a concretização do negócio. Nesse ínterim ocorreram baixas que não foram registradas. Assim é quase certo que o acervo negociado não corresponda integralmente ao existente em vida do proprietário. Por outro lado é conhecido o hábito que mantinha na juventude de freqüentar com assiduidade bibliotecas públicas. Seria equívoco admitir ficassem suas leituras restritas à livraria que reuniu ao longo da existência. Feita a ressalva quanto aos títulos remanescentes no conjunto sob a guarda da academia resta identificar os que de algum modo poderiam ter contribuído para subsidiar a investida do autor contra o cientificismo dogmático então vigente. Original, Machado de Assis criticou com humor e ironia as novas idéias apresentadas sob o patrocínio inquestionável da ciência. Sem abdicar da compostura pintou de ridículo coisa séria. Converteu ciência em extravagância, questionou divertindo. Respirou o oxigênio da controvérsia através da ficção evitando o confronto direto que sempre o incomodou. A estratégia revelou-se bem sucedida. Enquanto polêmicas apaixonadas sumiram na poeira do tempo a leitura de Machado continua prazeirosa e encantadora. A ficção venceu o ensaio, o universal o local, e o humor a rabugem.

No livro sobre a Biblioteca de Machado de Assis organizado por José Luis Jobim foram identificados apenas cinco volumes que poderiam ter contribuído para informá-lo sobre assuntos relacionados à doença mental, tema de que cuidou com freqüência nosso grande escritor. A relação é algo decepcionante, considerada a importância que deu ao assunto. Não está lá, por exemplo, o livro de Charles Lamb “Essays of Elia” que contém o ensaio “Two Races of Man” onde está a citação transcrita no original no conto “O Lapso”. O rastreamento das leituras de Machado a partir de sua biblioteca conhecida será, pelas razões demonstradas, insuficiente para identificar com precisão as influencias que terá sofrido.

Foram estes os livros encontrados na biblioteca que versam sobre a saúde mental e a psiquiatria:
- Philosophie de I’inconscient, de Édouard von Hartmannn, 1877.
- Prolégomènes à la psichogénie moderne, de Pierre Siciliani, 1880.
- L’Homme selon la science e La vie psychique des bêtes, ambos da autoria do Dr. Louis Bûchner, e ambos editados em 1881.
- Les maladies de la mémoire, de Th. Ribot, 1881.
- Physiographie, de Th. H. Huxley, 1882.


Todos surgidos no período em que mais se ocupou do tema tratado de forma genial nos celebrados romances “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba” e “D. Casmurro”.
Além da influência difusa dos autores prediletos de Machado espalhada em toda sua obra há situações particulares em que a inspiração guardaria vinculação direta com o trabalho de outrem. É o caso de “O Alienista” motivado pelo episódio real da fuga dos alienados do hospício Pedro II aliás comentado por ele em uma de suas crônicas. Há quem acredite estar embutida na sátira remissão crítica ao médico e senador José da Cruz Jobim, diretor da Escola de Medicina, primeiro, e durante muito tempo o único médico clínico do manicômio, político monarquista, conservador e proprietário em Itaguaí. Com ele se desaviera, travando polêmica pela imprensa, na defesa dos estudantes paulistas acusados de boêmia e esbórnias. O argumento do senador servia-lhe de pretexto para opor-se à criação de uma escola médica em São Paulo. Com Jobim, já morto, assim como em relação a Silvio Romero, levara tempo mas não renunciara ajustar contas.
Parece razoável supor que na raiz de o Alienista, além do fato acima mencionado esteja ensaio de Jonathan Swift “A serious and useful scheme to make a hospital for insanes” de 1733. Eloy Pontes e Antonio Austregésilo sugerem Poe, e Dumas, pai, também como fontes inspiradoras para a elaboração do conto. Citam “O Sistema do Dr. Goudron” de autoria do americano e “Os Doudos do Dr. Miraglia”, de Dumas, traduzido e publicado na Gazeta Mercantil em 1863, como evidências de suas assertivas.

Luis Costa Lima assinala que a partir de Alcides Maya e Eugênio Gomes foi possível identificar no humor de Machado uma forma de expressão transcendental, superior, que mistura e confunde.

Influências são inevitáveis em quem lê e pesquisa mas não podem ser vistas como dependência ou imitação. Na órbita da ciência, teorias despertam interesse e podem contribuir para a ficção incitando a criatividade do escritor. Terá sido o caso de Machado no conto “O Lapso”, no qual o personagem Tomé Gonçalves desenvolve uma espécie de amnésia seletiva, uma patologia do calote. A história está calcada claramente no livro de Th. Ribot “Les Maladies de La Memoire”, 1822, encontrado em sua biblioteca sobretudo no capítulo III, - “Les Amnésies Partíelles” e documenta como Machado manipula os textos e as informações emprestando-lhes fisionomia nova marcada pelo ridículo e o remoque finos.

A doença de Machado de Assis não foi determinante mas um ingrediente na construção de sua obra. Retraído, expandiu-se ao retratar seus personagens deixando nos livros a porta aberta para compreendê-lo. Alcides Maya admite em seu estudo ter Machado se autofografado no funcionário público Luis Garcia, no conselheiro Ayres e no Dom Casmurro. Augusto Meyer entretanto sugere que ainda aí o bruxo não se expõe. São imagens virtuais do introvertido que é, pescadas de sua pseudo personalidade. Foi um mestre do romance psicológico desnudando a alma humana, penetrando fundo no coração das pessoas para expor com a sutileza do estilo a negação das virtudes, a complexidade dos espíritos. Autopsiou o inconsciente, preocupou-se com as análises individuais sem retirar ilações coletivas.

Viveu na fronteira da loucura que tanto temia e tratou dela com constância sintomática. A aplicação do conhecimento psiquiátrico à exegese de textos literários é controversa, adverte Leme Lopes. Todavia a patografia já comprovou sua importância, e o estudo psicológico e psicopatológico, desenvolvido como se fora uma perícia psiquiátrica, pode ser útil para melhor decifrar autor e texto. Se a vida do escritor é o comentário de sua obra como quer Carrell o autor explica seus personagens.

Assumindo postura crítica em relação à modernidade científica e o mimetismo cultural acabou pela via da ficção por tornar-se precursor no campo da psiquiatria. Colocou limites à pretensão de pureza e neutralidade da ciência para admitir a atuação de outras formas de poder, religioso, político, econômico e social sobre ela. Antecipou-se a Freud no desvelar do inconsciente, a Laing e seus colegas antipsiquiatras na compreensão humana e social da loucura, e a Jaspers no emprego fenomenológico da investigação psiquiátrica.

Os últimos dias de vida passa-os na casa do Cosme Velho sucumbindo aos poucos ao mal inevitável rumo à morte que sempre esteve em seu instinto. Contido diante da dor e do sofrimento era visto murmurando o soneto “Mal Secreto” que muito apreciava de Raimundo Correia:

Se a cólera que espuma, a dor que mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Quanta gente que ri, talvez, consigo
Guarda um atroz, recôndito inimigo,
Como invisível chaga cancerosa!
Quanta gente que ri, talvez existe,
Cuja a ventura única consiste
Em parecer aos outros venturosa!

Antes que Guimarães Rosa dissesse “ninguém é louco ou então todos”, já o descobria o alienista da Casa Verde oscilando no pêndulo da ciência, preso à ortodoxia dos conceitos. Com essa porosidade do juízo, que é na verdade uma hipótese, com implicações sociais e jurídicas, o tema da loucura comparece na literatura de forma assídua, denotando íntima relação ao ponto de Foucault afirmar que “por trás de todo escritor esconde-se a sombra do louco que o sustenta, o doutrina e o recobre. Poder-se-ia dizer que, no momento em que o escritor escreve, o que ele conta, o que ele produz no próprio ato de escrever, não é outra coisa senão a loucura."
Se o dito é verdade não espanta que as paredes amarelas desta Academia que nos acolhe encerrem, ao cabo, não mais que uma Casa de Orates. Destino melhor que a obtusidade normal dos integrantes das Academias Sião.

Um comentário:

Unknown disse...

Uma das melhores palestras que ouvi sobre o meu mestre Machado de Assis.Lucio Alcantara é um autentico machadiano, e pelo que fala parece ter conversado diretamente por longos anos como O Bruxo do Cosme Velhor.....Parabéns , amigo e mestre em letras,também Dr.Lucio.