quarta-feira, 28 de março de 2012

Meu Personagem da Semana (Nélson Rodrigues)

1-    Amigos, o meu personagem é Garrincha. E podia ser Pelé, Garrincha ou Pelé, tanto faz. Um ou outro, mesmo sem fazer nada, é fato, é notícia, é retrato, é manchete. Para o “Paris Match”, mais vale um sorriso de Pelé do que o decote mais nítido, mais violento de Elizabeth Taylor. Mas eu escolhi Garrincha e explico: Dos seus pés (ou de Pelé) pode nascer a flor do Bi.

2-    Ora, dizem que, nesta terra, qualquer um é neurótico, inclusive os passarinhos matinais. A gente anda esbarrando, tropeçando em melancolias, em depressões hediondas. Pois bem, Garrincha não. Eu próprio já escrevi, a propósito do “Seu Mané”: “A única sanidade mental do Brasil”. E, com efeito, a saúde interior de Garrincha é de humilhar esses bebês de anúncio. Sim, de anúncio de talco. 

3-    No fundo, cada brasileiro é uma macaca de auditório de Garrincha. Notem: quando ele apanha a bola, o Maracanã, todo, arreganha um riso unânime e alvar. Não se sabe o que Garrincha vai fazer, qual a jogada que ele vai tirar de seu repertório tremendo. É um riso prévio, um riso que se antecipa à piada. Mas o que eu queria dizer é que pouco conhecemos de Garrincha ou, por outras palavras, que somos analfabetos em Garrincha. 

4-    Alguém dirá que eu exagero, talvez, e daí? Mas nem tanto, amigos, nem tanto. Há em Garrincha uma série de coisas óbvias e que ninguém percebe. Por isso, vivo eu a dizer que só o gênio, só o Miguel Ângelo, só o Shakespeare enxerga o óbvio. Por exemplo: Garrincha não usa chuteiras como um simples craque mortal. Não. Ele joga de duras e franciscanas sandálias. 

5-    Outra evidência ululante, e que ninguém descobriu: o nítido e taxativo parentesco de Garrincha com São Francisco de Assis. Eu disse “sandálias” para definir a relação entre os dois santos. Sei, perfeitamente, que qualquer um, inclusive um “gangster” de filme, tem um momento em que é um São Francisco de Assis, da cabeça aos sapatos. 
 
6-    Sim, de vez em quando, uma vez na vida e outra na morte, qualquer de nós é atravessado de luz como um vitral de igreja. Mas é um instante que passa para nunca mais. Em Garrincha, não. São Francisco de Assis não passa, está sentado na alma do craque. Eu diria, se me relevarem a expressão meio torpe, que o santo é para Garrincha um desses chatos que não largam o sujeito. 

7-    A qualquer hora do dia e da noite, em Pau Grande ou no Maracanã, Garrincha é franciscano. É o único brasileiro, vivo ou morto, que não conhece o ódio e, digo mais, que não conhece uma vaga de irritação. Nós somos um povo de ira fácil. Aqui, todo mundo gostaria de quebrar a cara de todo mundo (e, finalmente, ninguém quebra a cara de ninguém). Vocês se lembram daquele chefe de família que entrava em casa avisando: “Não falem comigo que, hoje, eu estou brigando automaticamente”. 

8-    Garrincha, não. Garrincha, nunca. Faz um futebol sem “foul”. É caçado em campo, a cacetadas, como uma ratazana o era nos tempos de Osvaldo Cruz. É ceifado, dizimado. E só uma coisa admira: é que, no fim de cada jogo, ele não saia de maca ou não saia de rabecão. Pois bem: e jamais ocorreu a Garrincha enfiar o pé na cara de ninguém. É quebrado e, depois, cata no chão os próprios cacos. 

9-    Mas onde Garrincha é mais franciscano, onde? Com as baianas. Sim, com as baianas turísticas, folclóricas, que vendem cuzcuz, pés de moleque, o diabo. E Garrincha prefere as cocadas brancas, nupciais, insiste: virginais. Mas não pensem que ele as come com uma simplicidade animal. Nada disso. Há uma ternura, há um amor. E ele poderia dizer como um santo: “Nossa irmã, a cocada”. 

10- Hoje, está em Campos do Jordão e eu repito: Campos do Jordão é um cimo lívido, varado de ventos tristíssimos, de ventos inconsoláveis. Faço então a pergunta: por que meter Garrincha e o “scratch” na geladeira, por quê? Alguém dirá que é uma preparação para o frio dos Andes. Mas pelo contrário! O brasileiro é canicular. Há, nele, uma feroz e eterna nostalgia de canícula. Devíamos entupir, devíamos abarrotar Garrincha e o “scratch” de sol, de muito sol. Para derrotar o abominável frio chileno. 

11- Algum Drummond podia ir, de porta em porta, pedindo: “Sejamos docemente Garrincha!” Ser Garrincha é uma solução para milhares, para milhões.

* Fonte: O GLOBO/Esporte - Sábado, 24 de março de 2012

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