sexta-feira, 27 de maio de 2011

Pacientes ou consumidores?

Os pacientes não são consumidores

O The Times informou, na semana passada, a reação do Congresso contra o Conselho Independente de Consultoria para Pagamentos, uma parte fundamental dos esforços do governo para controlar os custos dos cuidados com a saúde. Essa reação era previsível; é também profundamente irresponsável, como vou explicar.

Mas outra coisa que me impressionou quando olhei para os argumentos republicanos contra o Conselho, que se baseiam na noção de que aquilo que realmente precisamos fazer, como cita a proposta de orçamento da Câmara, é “fazer com que os programas governamentais da saúde se adaptem melhor às escolhas do consumidor”.

Eis a minha pergunta: como se tornou normal, ou mesmo um assunto aceitável, referir-se a pacientes como “consumidores”? A relação entre paciente e médico costumava ser considerado algo especial, quase sagrado. Agora, os políticos e os supostos reformistas falam sobre o ato de receber cuidados de saúde como se não fosse nada diferente de uma transação comercial, como comprar um carro - e a única reclamação deles é que não é comercial o suficiente.

O que deu errado com a gente?

Sobre o conselho de consultoria: temos que fazer algo sobre os custos dos cuidados com a saúde, o que significa que temos que encontrar uma maneira de começar a dizer não. Em particular, por causa da contínua inovação médica, não podemos manter um sistema em que, essencialmente, o Medicare pague por qualquer coisa que um médico recomende. E isso é especialmente verdadeiro quando a abordagem do cheque em branco é combinada com um sistema que dá aos médicos e aos hospitais - que não são santos - um forte incentivo financeiro para conduzir cuidados excessivos.

Daí o conselho de consultoria, cuja criação foi determinada pela reforma da saúde no ano passado. O conselho, composto por especialistas de saúde, trabalharia com uma taxa máxima de crescimento dos gastos do Medicare. Para manter essa taxa ou algo abaixo dela, o conselho apresentaria recomendações “rápidas” para o controle de custos que entrariam em vigor automaticamente, caso não fossem rejeitadas pelo Congresso.

Antes que você comece a gritar sobre “racionamento” e “painéis da morte”, lembre-se de que não estamos falando sobre os limites do tipo de plano de saúde que você pode comprar com o seu dinheiro (ou com o dinheiro da sua seguradora de saúde). Estamos falando apenas sobre o que será pago com dinheiro dos contribuintes. E pelo que me lembro, a Declaração de Independência não afirma que temos direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade com todas as despesas pagas.

E a questão é que escolhas devem ser feitas; de uma forma ou de outra, os gastos do governo com a saúde devem ser limitados.

Agora, o que os republicanos da Câmara propõem é que o governo simplesmente empurre o problema do aumento dos custos dos cuidados com a saúde para os idosos; ou seja, que substituamos o Medicare por vales que podem ser aplicados nos planos privados e que deixamos que os idosos e as seguradoras de planos de saúde resolvam isso de alguma forma. Isso, segundo eles afirmam, seria superior à revisão dos especialistas, porque abriria os cuidados com a saúde para as maravilhas da “escolha do consumidor.”

O que há de errado com essa ideia (além dos valores totalmente inadequados dos vales propostos)? Uma resposta é que ela não funcionaria. A medicina “baseada no consumidor” tem sido um fracasso em todos os lugares nos quais ela atuou. Para dar um exemplo mais diretamente relevante, o Medicare Advantage, que foi originalmente chamado de Medicare + Choice (Medicare + Escolha), teria que economizar dinheiro, mas gastou muito mais do que o Medicare tradicional. Os Estados Unidos têm o sistema de saúde mais “orientado ao consumidor” dos países avançados. Também têm, de longe, os maiores custos, embora a qualidade no atendimento não seja melhor do que os sistemas muito mais baratos de outros países.

Mas o fato de que os republicanos estejam exigindo que nós, literalmente, coloquemos em jogo a nossa saúde, e até mesmo as nossas vidas, em uma abordagem que já é fracassada é apenas uma parte do que está errado aqui. Como disse anteriormente, há algo terrivelmente errado com toda a noção de pacientes como “consumidores” e os cuidados de saúde como uma mera operação financeira.

Os cuidados médicos, afinal, são uma área em que decisões cruciais - as decisões de vida ou de morte - devem ser tomadas. No entanto, a tomada de decisões de modo inteligente requer uma grande quantidade de conhecimento especializado. Além disso, as decisões, muitas vezes, devem ser tomadas em condições nas quais o paciente está incapacitado, sob forte estresse ou necessita de ação imediata, sem tempo nem para discussão, quanto mais para comparação de preços.

É por isso que temos a ética médica. É por isso que os médicos são vistos, tradicionalmente, como algo especial e espera-se que eles se comportem de acordo com padrões mais elevados do que outro profissional. Existe uma razão pela qual temos séries de TV sobre médicos heroicos e não temos séries de TV sobre gerentes heroicos.

A ideia de que tudo isso pode ser reduzido a dinheiro - que os médicos são apenas “profissionais” que vendem serviços de cuidados com a saúde aos “consumidores” - é, na verdade, doentia. E a prevalência deste tipo de linguagem é um sinal de que alguma coisa saiu muito errado não só com essa discussão, mas com os valores da nossa sociedade.


Paul Krugman, Professor de Economia da Universidade de Princeton é articulista do New York Times. Recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2008.

Tradução: Daniela Nogueira
danielanogueira@opovo.com.br

Fonte (29.04.2011):  O POVO Online/Colunas/paulkrugman

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