UMA MENINA DE (AO MENOS) 800 ANOS
(Pasquale Cipro Neto)
O documento régio mais antigo redigido em português de que se tem notícia o
Testamento de D. Afonso II, o terceiro rei de Portugal. A data desse
documento? 27 de junho de 1214. Já lá se vão 800 anos e alguns dias.
Há registros de documentos escritos antes, mas, por ser oficial e por ter
estrutura e formas que o distinguem do galego-português, isto, por ter
sido escrito em português (arcaico), o Testamento de D. Afonso II
simboliza a "certidão de nascimento" da nossa língua.
Para alguns, esse "nossa" que acabo de empregar motivo bastante para
uma "guerra", mais ideológica do que real ou concreta. Explico: tanto no
Brasil quanto em Portugal há gênios que dizem que o que se fala no Brasil
"brasileiro".
Dou um exemplo, real e inacreditável: um amigo (brasileiro) entrou numa
loja do aeroporto de Lisboa e perguntou algo a uma funcionária, que
respondeu em inglês. O "cliente" fingiu que no ouvira o que ouvira e
continuou a conversa em português, mas a rapariga... Bem, diante da
insistência dela em responder em inglês, tornou-se inevitável a pergunta:
"Mas por que a senhora me responde em inglês se entende perfeitamente o
que lhe digo em português?". Prepare-se, caro leitor: "Porque eu só falo
português com portugueses; com turistas, falo inglês".
Sim, nos 514 anos desses 800 (que certamente so mais de 800), o português
do Brasil fez o que afirma Caetano Veloso na genial "Língua" (de 1984):
"Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". "A língua
de Luís de Camões" o português de Portugal, e "a minha língua" o português
brasileiro moderno, feito com o roçar do português europeu.
A origem (latina) de "roçar" é a mesma de "romper" ("rasgar, quebrar,
arrebentar"). "A minha língua" se faz como faz quem tem nas mãos uma foice
e sai abrindo caminho.
Não se pode esquecer que, por extenso de sentido, "roçar" tem os traços
semânticos de "tocar", "resvalar", "friccionar", sentidos que se ilustram
bem pelo roçar de pernas que se dá numa conjunção carnal amorosa -na letra
de Caetano, essa conjunção se dá entre o português de lá e o de cá. Se
pensarmos na metáfora de uma conjunção carnal, os corpos (as duas vertentes
da língua) aproximam-se e afastam-se, aproximam-se e afastam-se...
No belíssimo documentário "Língua _Vidas em Português" (do moçambicano Victor
Lopes), disponível no YouTube, o grande escritor moçambicano Mia Couto
faz referência e reverência específica ao namoro e à conjunção carnal entre o
português europeu e o do Brasil. Mas do notável José Saramago a mais cabal
definição: "Penso que no haja propriamente uma língua portuguesa; há línguas
em português".
Celebremos os mais de 800 anos e a multiplicação de outros tantos -que
decerto virão. E celebremos o que já se fez e se faz na nossa língua, que
nossa, sim, e de todos, sem ressentimentos ou preconceito.
Lembro aqui uma apresentação de Caetano Veloso em Roma. Ao chamar para o
palco a magnífica cantora portuguesa Dulce Pontes, Caetano disse, em
italiano, que a chamaria "per cantare con me nella nostra lingua
portoghese".
Lembro também o grande Fernando Pessoa: "A minha pátria a língua
portuguesa". Em "Língua", Caetano cita esse pensamento e, num primeiro
momento, altera-o ("Minha pátria minha língua") e exemplifica-o com esta
exortação: "Fala, Mangueira!". Em outro momento, Caetano cita-o novamente e
o emenda: "A língua minha pátria/ E eu no tenho pátria, tenho mátria / E
quero frátria".
Como diz Mia Couto, o
Brasil deu as costas para a África (e também para Portugal, creio). E, de
certa maneira, estamos todos de costas uns para os outros.
Independentemente disso, as línguas em português seguem (e seguirão!) belas, firmes e fortes. É isso.
Fonte: Folha de São Paulo (17/07/2014)
sexta-feira, 25 de julho de 2014
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