sexta-feira, 25 de julho de 2014

UMA MENINA DE (AO MENOS) 800 ANOS
(Pasquale Cipro Neto)
 
 O documento régio mais antigo redigido em português de que se tem notícia o Testamento de D. Afonso II, o terceiro rei de Portugal. A data desse documento? 27 de junho de 1214. Já lá se vão 800 anos e alguns dias.

Há registros de documentos escritos antes, mas, por ser oficial e por ter estrutura e formas que o distinguem do galego-português, isto, por ter sido escrito em português (arcaico), o Testamento de D. Afonso II simboliza a "certidão de nascimento" da nossa língua.

Para alguns, esse "nossa" que acabo de empregar motivo bastante para uma "guerra", mais ideológica do que real ou concreta. Explico: tanto no Brasil quanto em Portugal há gênios que dizem que o que se fala no Brasil "brasileiro".

Dou um exemplo, real e inacreditável: um amigo (brasileiro) entrou numa loja do aeroporto de Lisboa e perguntou algo a uma funcionária, que respondeu em inglês. O "cliente" fingiu que no ouvira o que ouvira e continuou a conversa em português, mas a rapariga... Bem, diante da insistência dela em responder em inglês, tornou-se inevitável a pergunta: "Mas por que a senhora me responde em inglês se entende perfeitamente o que lhe digo em português?". Prepare-se, caro leitor: "Porque eu só falo português com portugueses; com turistas, falo inglês".

Sim, nos 514 anos desses 800 (que certamente so mais de 800), o português do Brasil fez o que afirma Caetano Veloso na genial "Língua" (de 1984): "Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões". "A língua de Luís de Camões" o português de Portugal, e "a minha língua" o português brasileiro moderno, feito com o roçar do português europeu.

A origem (latina) de "roçar" é  a mesma de "romper" ("rasgar, quebrar, arrebentar"). "A minha língua" se faz como faz quem tem nas mãos uma foice e sai abrindo caminho.

Não se pode esquecer que, por extenso de sentido, "roçar" tem os traços semânticos de "tocar", "resvalar", "friccionar", sentidos que se ilustram bem pelo roçar de pernas que se dá numa conjunção carnal amorosa -na letra de Caetano, essa conjunção se dá entre o português de lá e o de cá. Se pensarmos na metáfora de uma conjunção carnal, os corpos (as duas vertentes da língua) aproximam-se e afastam-se, aproximam-se e afastam-se...

No belíssimo documentário "Língua _Vidas em Português" (do moçambicano Victor Lopes), disponível no YouTube, o grande escritor moçambicano Mia Couto faz referência e reverência específica ao namoro e à conjunção carnal entre o português europeu e o do Brasil. Mas do notável José Saramago a mais cabal definição: "Penso que no haja propriamente uma língua portuguesa; há línguas em português".

Celebremos os mais de 800 anos e a multiplicação de outros tantos -que decerto virão. E celebremos o que já se fez e se faz na nossa língua, que nossa, sim, e de todos, sem ressentimentos ou preconceito.

Lembro aqui uma apresentação de Caetano Veloso em Roma. Ao chamar para o palco a magnífica cantora portuguesa Dulce Pontes, Caetano disse, em italiano, que a chamaria "per cantare con me nella nostra lingua portoghese".

Lembro também o grande Fernando Pessoa: "A minha pátria a língua portuguesa". Em "Língua", Caetano cita esse pensamento e, num primeiro momento, altera-o ("Minha pátria minha língua") e exemplifica-o com esta exortação: "Fala, Mangueira!". Em outro momento, Caetano cita-o novamente e o emenda: "A língua minha pátria/ E eu no tenho pátria, tenho mátria / E quero frátria".

Como diz Mia Couto, o Brasil deu as costas para a África (e também para Portugal, creio). E, de certa maneira, estamos todos de costas uns para os outros.

Independentemente disso, as línguas em português seguem (e seguirão!) belas, firmes e fortes. É isso. 

Fonte: Folha de São Paulo (17/07/2014)

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