sexta-feira, 5 de outubro de 2012

BIOÉTICA - DA COMPAIXÃO PIEDOSA À SOLIDARIEDADE

    A compaixão piedosa instaura uma modalidade peculiar de exercício do poder, estruturada a partir do binômio servir-obedecer, multiplicando a existência de relações dissimétricas entre quem assiste e quem é assistido. Empreender uma crítica da compaixão exige lembrarmos Nietzsche, que realizou um estudo demolidor dessas estratégias de poder – as quais, no momento em que prometem assistência, multiplicam os mecanismos de controle e docilização.
   Para ele, a figura do homem piedoso é a de alguém que quer socorrer sem pensar que os infortúnios podem ser uma necessidade pessoal, que podemos necessitar tanto do terror, das privações, da pobreza e desenganos quanto dos bens contrários. Ao ter o impulso de socorrer, quanto antes melhor, a pessoa compassiva não mede se as conseqüências deste socorro imediato são ou não desejadas por aquele que padece um infortúnio.
   Por isso, podemos assistir a imorais mas piedosas atitudes que respondendo à força da compaixão e à procura do bem-estar reproduzem a mais ilegítima, ainda que legalizada, coerção: aquela que pessoas caridosas exercem sobre os infortunados. Legitima-se, assim, que compulsoriamente os "home less" sejam deslocados para abrigos públicos reconhecidamente perigosos; que os ditos "loucos" sejam isolados em centros que, clara e indiscutivelmente, não são espaços de reabilitação ou cura; que os "meninos de rua" sejam recolhidos em asilos para esperar uma adoção sempre diferida; que se interfira, piedosamente, na dissolução e separação de famílias carentes. As reflexões de Nietzsche, bem como as de Hannah Arendt ou Thomas Szasz, defrontam-se com esses mecanismos obscuros e cotidianos, através dos quais a piedade e a compaixão se revelam como uma tecnologia de poder que insiste em aparecer com a máscara de um desapaixonado e necessário "humanismo".
   É provável que, quotidianamente, descubramos a existência desses espetáculos de coerção e submissão, mas a força de sua freqüência nada nos diz sobre os motivos que levam esses benfeitores a compartilhar a crença de que realizam atos morais e, assim, podem afirmar-se como pessoas "virtuosas". Em todos esses fatos que se resumem na palavra "caridade" o que se evidencia é que, muitas vezes, o que fazemos é libertar-nos de um sentimento de dor absolutamente nosso: a dor que inspira o espetáculo da miséria. Thomas Szasz dá um bom exemplo de como a compaixão não tem por que ser considerada virtude: narra suas lembranças de Budapest, a visão de amputados e indigentes solicitando algumas moedas, e lembra o sentimento de compaixão que dele se apoderava. Reconheceu que sua generosidade não era completamente altruísta, que na verdade era motivado por um vago receio de que destino semelhante lhe pudesse acontecer – aliado a uma esperança supersticiosa de resolver, por alguma força divina, esses problemas.
   Lembremos que os filósofos gregos não pensavam a compaixão como virtude, ela era considerada um sentimento alheio à mediação das palavras, argumentos e razões. Alheio a essa eleição deliberada, que deve ser o suporte de todo agir que possa ser considerado "virtuoso". Para Aristóteles, "nem as virtudes nem os vícios são paixões, pois não somos chamados de bons ou de maus em razão de nossas paixões. Aquele que vive conforme manda a paixão não ouvirá argumentos que venham a dissuadi-lo, nem os compreenderá. A paixão parece conduzir, não ao argumento, mas à força". Como Hannah Arendt soube mostrar, a esfera de discussão e diálogo, o jogo de perguntar e responder, é alheia à compaixão.
   Não se trata de desvalorizar esse sentimento que nos aproxima dos outros e que, muitas vezes, é inevitável, mas sim evidenciar as dificuldades surgidas quando elevamos essa compaixão – que sabemos inútil e ineficiente, que reconhecemos como um pobre instrumento para suprir qualquer necessidade – ao nível de uma categoria moral ou social: quando acreditamos que a mesma é capaz de nos construir como sujeitos "virtuosos" ou quando nela pretendemos fundamentar uma ordem social imaginariamente mais justa.
   A moral da compaixão, que apregoa a entrega e a mortificação, detesta reconhecer que por trás de um ato de piedade e na própria entrega de si o que se afirma é a existência de uma dívida que haverá de ser paga com eterna gratidão e humildade (quanto maior o sacrifício, maior a dívida gerada). A partir do momento em que alguém manifesta piedade por outra pessoa, a carateriza como sujeita a uma debilidade, como alguém que só pode superar suas limitações pelo socorro oferecido – o que estabelece uma divisão binária entre aquele que se engrandece ao realizar a ação e aquele que se diminui ao recebê-la.
   Conceder à compaixão, à caridade ou à piedade um valor moral pode levar a crer, erradamente, que ao socorrer aos outros nos engrandecemos como agentes morais. É justamente esta ilusão, do suposto engrandecimento "moral" de si, que impede pensarmos que, talvez, nosso gesto de compaixão não seja desejado; que possa ter conseqüências negativas para o "beneficiário" ou que, simplesmente, possa gerar e promover estados de dependência e submissão. Algo assim acontece quando sufocamos o doente com cuidados que ele próprio poderia assumir, quando pelo bem de algumas pessoas "inconvenientes" as preferimos excluir, ou quando acreditamos conhecer as necessidades dos outros, antes mesmo de solicitadas. Nesse jogo perverso, o infortúnio do semelhante corre o risco de converter-se em "edificante" para os seres compassivos – é porque existe o "mal" que eles podem realizar o "bem".
   Em poucas palavras, Hannah Arendt resumiu os perigos próprios da sobrevalorização da compaixão e da piedade: "A piedade, tomada como fonte de virtude, tem demonstrado possuir uma capacidade para a crueldade, maior do que a própria crueldade". Pois a partir do momento em que esse ser que sofre não é um sujeito individual e próximo, mas sim o conjunto de um povo também chamado de "pobres", "homens fracos", "desgraçados", esse socorro imediato e irrefletido quase inevitavelmente se converterá numa escusa para legitimar a violência ou a exclusão.
   Ocorre que a compaixão prescinde de palavras, caracteriza-se, como explicitou Rousseau, por uma aversão a qualquer espécie de diálogo conciliatório e argumentativo, onde alguém fala com outro sobre alguma coisa que é de interesse de ambos. O interesse argumentativo no mundo, próprio do agir moral e político, é alheio à compaixão. Esta é sempre e necessariamente um co-sofrimento, uma paixão íntima alheia a qualquer generalização, um sentimento que não pode evitar reduzir e unificar os que sofrem. Pelo contrário, o pensamento, bem como o agir político, por seu caráter discursivo tem a possibilidade de deslocar-se de um ponto de vista até outro, tentando atingir uma generalidade imparcial.
   A compaixão apaga as diferenças, elimina o espaço material que separa os homens, aproxima as pessoas não pela palavra, mas sim pelos gestos ou silêncios. O pensamento, por sua vez, longe de isolar-nos na interioridade do eu, nos obriga a fazer um esforço por integrar posições diversas, por imaginar como agiríamos no lugar dos outros. Permite estabelecer um diálogo com aqueles que estão presentes no meu espírito quando avalio uma questão, tentando substituir a violência, própria dos vínculos de mando e de obediência, pelo entendimento entre iguais.
   Porém, se a compaixão fica restrita aos vínculos imediatos, não mediados pela palavra, se não pode ser considerada uma virtude, como afirma Aristóteles, e só pode ser pensada como uma paixão, pode-se concluir que não existe nenhum princípio capaz de guiar ações tendentes a diminuir ou anular o sofrimento alheio? Hannah Arendt responde a essa questão ao afirmar que a alternativa à piedade e à compaixão é a "solidariedade".
   A solidariedade é um vínculo que se estabelece entre pessoas que se podem reconhecer, pelo menos virtualmente, como iguais, como sujeitos com capacidade de estabelecer um diálogo onde sejam avaliadas as razões e os limites do auxílio prestado. Não se trata de um sentimento que leva em si próprio seu prazer, nem de uma atração pelos "homens fracos" que reforce a polaridade entre posições dissimétricas. A solidariedade encontra seu fundamento na simetria dos interesses, numa "desapaixonada comunidade de interesses" com os infortunados, na medida em que todos compartilham uma única preocupação por universalizar a "dignidade humana". Assim, ainda que uma ação eficaz possa ser motivada pelo sofrimento, nunca é por ele guiada, pois deve compreender "tanto os fortes e os ricos quanto os fracos e os pobres". É verdade que comparada com o sentimento de piedade pode parecer fria e abstrata, pois "permanece mais comprometida com idéias como grandeza, honra ou dignidade do que com qualquer "amor" pelos homens".
   No entanto, a solidariedade supera o vínculo imediato do co-sofrimento ao não ser nem silenciosa nem gestual, pois precisa da mediação das palavras para poder generalizar-se. É próprio da compaixão e da piedade igualar, apagar as diferenças entre os que sofrem, unificá-los sob o nome de "infortunados". Como afirma Nietzsche: "O próprio do sentimento de compaixão é despojar a dor alheia do que ela tem de pessoal", de individual e irrepetível. A solidariedade procura, em troca, tomar como ponto de partida as diferenças, a "pluralidade humana". Perante a impossibilidade de falar de uma natureza que nos unifique, ou que unifique os que sofrem, Arendt pensa a condição humana em função da categoria da "pluralidade".
   Porque existe diferença, porque ninguém é igual a qualquer outro que tenha vivido, viva ou viverá jamais, a ação e o diálogo não são luxos não necessários, mas sim elementos constitutivos deste nós que somos. O próprio da condição humana é nossa participação no âmbito da vida ativa, onde os vínculos devem ser sempre e necessariamente mediados pela palavra (único modo de garantir a exclusão da violência). Outorgar prioridade à solidariedade sobre a piedade, à monotonia do diálogo entre iguais, sobre a aparente luz do sentimento, nos permite excluir qualquer forma de glorificação da miséria e, conseqüentemente, qualquer interesse sentimental em sua existência. "Por tratar-se de um sentimento, a piedade pode encontrar em si própria seu prazer; isso leva, quase que automaticamente, a glorificar sua causa: o sofrimento alheio". Assim, e pela patética lógica da piedade, a miséria e o sofrimento deixam de ser obstáculos que devem ser superados tecnicamente para se converter em uma realidade triste, que devemos tolerar.
   Acreditamos que essa glorificação do sofrimento alheio, que faz da dor e da miséria elementos necessários para que o benfeitor seja reconhecido como um agente moral, pode estar presente no assistencialismo apresentado sob a forma de um "auxílio compassivo" a quem sofre. Da leitura de Nietzsche e Hannah Arendt pode-se concluir que a partir do momento em que a "razão terapêutica" se apresenta a si própria como compassiva corremos o risco de reforçar a dependência do paciente e, conseqüentemente, desestimar sua capacidade de decisão, ação, eleição e diálogo refletido. A razão terapêutica deve enfrentar-se quase inevitavelmente com sujeitos que se consideram a si próprios prisioneiros de uma debilidade, o que torna indispensável que o saber médico apele para estratégias capazes de impedir que essa sujeição inicial resulte em passiva aceitação.
   A lógica da compaixão pode vir a reforçar essa passividade por ser refratária às palavras, por privilegiar os gestos, olhares e carícias, e não os argumentos através dos quais uma intervenção médica sobre nosso corpo pode tornar-se inteligível. Pode nos impulsionar a agir invocando o nome e o bem daqueles que dizem assistir. Acredita conhecer esse bem de um modo claro e distinto. Pode então prescindir de argumentos, excluir as palavras e silenciar qualquer diálogo fundado em perguntas e respostas razoáveis. Nietzsche diz que o compassivo nada entende de razões: "O coração o manda socorrer e ele acredita fazê-lo melhor quanto mais imediato for o socorro".
   A solidariedade, pelo contrário, no momento em que pressupõe a pluralidade humana, precisa da mediação do diálogo e da argumentação razoada – indispensáveis para assumirmos o lugar daquele que sofre e reclama o direito a ser assistido; desse outro que (mesmo quando seus interesses possam ser contrários aos meus) reconhecemos como alguém semelhante em orgulho e dignidade. Sendo assim, seria desejável que os programas de assistência tentem "colocar o respeito acima da compaixão", a solidariedade acima da piedade.
   
* Sandra Caponi (Doutora em Filosofia e professora adjunta do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina)

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