sexta-feira, 18 de março de 2016

HAVANA, FORMOSA EM SUA DECREPITUDE
Leonardo Padura



Pessoas de todas as partes do mundo chegam todos os dias a Havana com a intenção, entre outras possíveis, de penetrar em um parque temático do urbanismo eclético, que, como vantagem adicional, possui o ingrediente de ser habitado por pessoas reais, com vidas reais.
A capital cubana, que nasceu e cresceu graças à geografia –a bênção de uma baía protetora diante da corrente e do golfo do México–, foi até o século 18 uma cidade mais marinheira e militar que civil ou religiosa. Seu primeiro grande crescimento urbano se deu no século 19, quando, ainda colônia espanhola, a ilha desfrutou de um crescimento econômico impressionante. Palácios burgueses, teatros, avenidas e praças cresceram então, extrapolando o velho recinto murado, e converteram Havana numa cidade esplendorosa.
Já no século 20, os momentos de prosperidade econômica contribuíram para lhe dar sua fisionomia definitiva, num processo de expansão urbana que deu origem aos novos bairros aristocráticos e de classe média em que hoje vive a maior parte da população havanesa.
Os paulatinos movimentos expansivos da cidade foram deixando para trás, como obstáculos do passado, os lugares que iam perdendo a preferência dos cidadãos mais influentes. Mas sua permanência urbana tornou-se necessária para abrigar a grande massa proletária, os migrantes nacionais e estrangeiros que ocuparam essas áreas que ficaram desfavorecidas e entre as quais se encontrava, justamente, a zona mais histórica da cidade, a chamada Havana Velha.
As décadas do período revolucionário iniciado em 1959 que sacudiram a sociedade cubana até suas bases mudaram muito pouco essa estrutura física que a cidade tinha alcançado. Pelo contrário –entre carências econômicas e o descaso governamental e privado, a cidade de Havana não apenas ficou parada no tempo e no espaço como foi caindo nesse marasmo de abandono em que se encontrava na década de 1990, quando chegou a grande crise econômica do momento pós-soviético e, como ele, a impossibilidade de melhorar o estado construtivo de uma cidade envelhecida que foi se povoando de ruínas, desastres urbanísticos e ruas esburacadas.
Em parte graças a esse abandono, a Havana Velha, diferentemente de outros bairros históricos, conservou sua cara antiga e, devido ao empenho do Escritório do Historiador da Cidade, iniciou um quarto de século atrás um processo de recuperação que, apesar de parcial, conseguiu resgatar o encanto de uma parte da cidade colonial e preservar suas construções mais históricas e simbólicas, conferindo-lhes, além disso, utilidade e visibilidade. Hoje a Havana colonial é uma importante atração turística internacional.
Mas o resto da cidade, excetuando obras e zonas muito pontuais, não teve a mesma sorte. A prolongada falta de investimentos em sua melhoria cobrou e está cobrando o preço de uma deterioração crescente que se torna especialmente dramática em um país cujo déficit habitacional é um de seus males sociais crônicos.
O panorama urbano de Havana se complicou, além disso, devido a uma política muito vulnerável de organização urbanística que permitiu a deformação profunda do caráter de certas áreas da capital cubana e o surgimento de modificações estruturais e decorativas que fizeram do tradicional espírito eclético da cidade (dona, segundo o escritor Alejo Carpentier, "do estilo das coisas que não têm estilo") um emaranhado de possibilidades em que o feio e o improvisado ergueram seu império.
Assim, hoje Havana, ou grande parte de Havana, é uma cidade ameaçada pelas ruínas. Com ruas estragadas, rede de esgotos obsoleta e muitas, muitas construções em mau estado ou em condições de "estática milagrosa" (porque só não caíram por milagre), a cidade clama por uma inversão grande que a salve e, sobretudo, permita uma vida familiar mais digna para centenas de milhares de pessoas.
Somam-se a essas circunstâncias existentes na Havana "visível" as que se vivem na Havana "invisível", aquela que foi tomando conta da periferia urbana onde nasceram diversos assentamentos emergentes, muitos deles sem rede de água ou esgotos, formada por construções erguidas com qualquer material que possa servir de paredes e telhado. Esses bairros, onde vivem sobretudo pessoas vindas da parte oriental da ilha (os chamados "palestinos"), imagino que não devem figurar em nenhum plano urbanístico, razão pela qual não devem receber inversões –apesar de que ali também vivem cubanos e cubanas, velhos e crianças.
Mas acontece que no calor do boom de Cuba, e em especial de Havana como destino turístico, e sob o efeito do novo estado das relações entre a ilha e os Estados Unidos, Havana parece estar no centro de interesse de muitos investidores. Esses investidores potenciais sabem que a capital cubana é uma cidade atraente, histórica, singular (esse parque temático que mencionei antes), mas onde praticamente tudo está por fazer. Porque Havana precisa de uma renovação de sua infraestrutura; a cidade clama por hotéis e outros alojamentos; ela precisa de uma remodelação de seu litoral, ainda mais quando o porto comercial foi transferido para Mariel e a baía de Havana ficará como raia turística e esportiva.
Como Havana vai assimilar esse vendaval tão necessário, eu diria até inevitável, que assoma no horizonte? Que política econômica e urbanística aplicar: a tradicional, caracterizada pelo controle e os freios, ou a da abertura... e do descontrole? A ruína ou o aço e o vidro? Algum meio termo?

Os dilemas são dramáticos, e os urbanistas e arquitetos cubanos têm consciência disso. Havana não pode continuar em seu estado atual, porque sua doença é demasiado grave. Se bem que, como diz o refrão cubano, às vezes "o remédio é pior que o mal". Só que, para salvar a cidade, é preciso salvar primeiro o bem-estar de seus habitantes, e entre uma e outra exigência pode estar a alternativa do diabo... e o fim dessa Havana, formosa em sua decrepitude, que ainda hoje podemos ver... sofrer.

Fonte: Folha de S. Paulo (27/02/16)

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