A presidente Dilma Rousseff tenta passar à história não como grande faxineira, mas como gestora de um ambicioso plano de crescimento econômico e de eliminação da miséria remanescente. Só não parou mais cedo a faxina porque a imprensa continuou denunciando bandalheiras na administração federal. Se as denúncias continuarem, e não faltará material para isso, a vassoura só será encostada se ela se render, de uma vez, às pressões de seu partido e dos grupos aliados. Nesse caso, prevalecerá, mais uma vez, o grande pacto político pela predação do Estado. O primeiro passo para romper esse pacto seria uma reforma política para valer – não, é claro, aquela em tramitação no Congresso. O projeto já relatado e provisoriamente posto em banho-maria deixa intocados todos os males e acrescenta alguns ao sistema.
Não basta mexer no processo eleitoral e no registro de partidos, nem adianta muito adotar uma Lei da Ficha Limpa. Alguns ladrões serão barrados, mas outros logo entrarão em campo, simplesmente porque o jogo do poder, no Brasil, é excepcionalmente lucrativo. Pode ser lucrativo no mundo todo, mas o caso brasileiro é fora do comum.
Para tornar o jogo menos tentador, seria preciso sacramentar alguns princípios simples. Contribuinte não tem de financiar partidos, nem de sustentar sindicatos, nem de entregar dinheiro para ser presenteado a ONGs.
Não deve ser forçado a custear a reeleição de parlamentares. Manter escritórios políticos tem de ser atribuição dos próprios políticos e de seus partidos, assim como as viagens de visita às bases. Não se deve usar a verba indenizatória para essas finalidades. Secretarias, Ministérios e diretorias de autarquias e estatais são funções públicas e nenhum governante deve ter o direito de lotear cargos. Também não deve permitir a formação de feudos partidários em setores da administração. Não pode haver cotas de grupos ou partidos nem, portanto, “cota presidencial”, uma aberração ininteligível no mundo civilizado. A “cota” de quem chefia o governo é todo o Ministério. Isso não exclui a presença de aliados no primeiro escalão, mas não por loteamento. Também é indispensável diminuir o número de postos de livre provimento.
É preciso mudar o processo orçamentário. Sem isso, parlamentares continuarão distribuindo favores e desviando verbas por meio de emendas. Alguns defendem o sistema de emendas arbitrárias e picadinhas como democrático, assim como o presidente do Senado, José Sarney, defendeu os privilégios dos congressistas como “homenagem à democracia”. Não há democracia nenhuma na apropriação de verbas para distribuição de benefícios a indivíduos, grupos, organizações, empresas ou mesmo cidades escolhidas de acordo com interesses pessoais do parlamentar. O dinheiro é público, a tramitação do Orçamento é um ritual da vida pública e o parlamentar ocupa um cargo público. Mas é um abuso chamar de política pública a transformação do Orçamento numa pizza dividida segundo os objetivos privados de cada participante.
Cabe ao Executivo propor políticas e prioridades e submetê-las ao Legislativo. Num país politicamente maduro, a discussão antecede a elaboração do Orçamento e se prolonga, muitas vezes, durante a tramitação da proposta orçamentária. No Brasil, tem havido no máximo caricaturas desse processo. Mesmo sem comércio de emendas, sem dinheiro para organizações de fachada e sem distribuição de favores, o atual sistema resulta em desperdício de bilhões.
Mas o problema não está só nas emendas. Faltam discussão e clareza na elaboração da proposta. A saúde é prioritária? As verbas destinadas ao setor são bem alocadas? Os programas atendem a um esquema bem definido de prioridades? A distribuição total de recursos é compatível com a importância de cada setor? Discussões desse tipo serão mais prováveis quando os parlamentares se interessarem mais pelas questões públicas. Não será impossível chegar lá. Haverá menos mensaleiros e outros malandros, entre os candidatos, quando o Legislativo for menos parecido com um grande mercado. Ingenuidade? Não. Basta reduzir os incentivos errados ao ingresso na vida parlamentar.
O atual projeto de reforma apenas servirá, se aprovado, para reforçar as distorções. Não há um único bom motivo para forçar o eleitor a financiar os partidos – nem com verbas de campanha, nem com o fundo partidário já existente. O ex-sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva foi eleito e reeleito presidente da República, sempre com financiamento privado. Contribuições de particulares sempre serão disponíveis, se os partidos tiverem atrativo suficiente. Se o dinheiro for entregue de modo claro e dentro dos limites legais, o sistema será mais equilibrado e mais limpo do que aquele em discussão no Congresso. Não se criará mais democracia forçando os cidadãos a financiar interesses privados – como são, em princípio, os interesses partidários.
* Fonte: Jornal "O Estado de S.Paulo" (12 de outubro de 2011)
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