UM PRAZER SOLITÁRIO
Jorge Coli
Não faz muito tempo, fui assistir a uma ópera. Era
"As Bodas de Fígaro", de Mozart. Lá para o final, o personagem mais
importante, Fígaro, faz um retrato cruel das mulheres. Diz: "Abram um
pouco os olhos, homens incautos e bobos. Olhem essas mulheres, olhem o que elas
são".
Segue enumerando: "São bruxas que enfeitiçam
para nos deixar sofrendo, sereias que cantam para nos afogar... São rosas
espinhosas, raposas maliciosas, mestras de engano e de angústias, que fingem e
mentem, que amor não sentem, não sentem piedade". Conclui: "O resto
do que são capazes não digo: cada um já sabe". E Mozart, com seu humor
malicioso, faz então soarem as trompas: o nome do instrumento em italiano é
"corno".
No século 18, quando "As Bodas de Fígaro"
foi composta, a sala toda ficava iluminada. Não se deixava o público no escuro,
como hoje. Os cantores podiam então interpelar diretamente a assistência. Na
montagem que vi, o diretor de cena teve a ideia de acender as luzes da sala
durante a ária de Fígaro, que saiu do palco e dirigiu-se aos homens presentes.
Eu estava na extremidade da fileira, ao lado do
corredor por onde ele passava. Logo atrás de mim, na segunda fila, uma senhora
furiosa levantou-se. Fez o sinal de "não" nas fuças do pobre cantor e
retirou-se protestando em voz alta. De início, pensei que fosse parte do
espetáculo —hoje em dia, com as montagens modernas, tudo é possível. Mas não,
era uma feminista embravecida.
Pensei que ela poderia ter prestado mais atenção. O
tema nuclear de "As Bodas de Fígaro" é atual: trata-se de
desmascarar, denunciar e punir um poderoso aristocrata que é violento predador
sexual.
A peça da qual a ópera foi extraída é de um
francês, Beaumarchais. Pareceu subversiva e foi proibida. Nela, a velha
Marcelina proclama, de maneira eloquente, a tirania masculina.
Diz, entre outras coisas: "Mesmo na sociedade
mais elevada, as mulheres obtêm dos homens apenas uma consideração irrisória...
Somos mantidas numa real submissão, tratadas como menores de idade no que se
refere aos nossos bens, mas como maiores quando devemos ser punidas".
Mozart excluiu esse trecho para evitar a censura, mas, ainda assim, fez uma
clara acusação antimachista.
Aquela senhora furiosa não deu tempo para a
conclusão da ópera, não viu a condenação do conde brutal e revoltou-se antes do
tempo. Tal suscetibilidade, irritada pela situação inferior em que, do modo
mais injusto, as mulheres são mantidas em nossas sociedades, é compreensível.
Levou-a a partir antes que as acusações de Fígaro contra o gênero feminino
fossem desmentidas. Indignou-se cedo demais.
Indignação: eis o problema. Nunca tive simpatia por
essa palavra. Pressupõe cólera e desprezo. Quando estamos sozinhos, a
indignação nos embriaga como se fosse uma droga. Arrebata a alma, enfurece as
vísceras, dilata os pulmões e nos faz acreditar na veemência do nosso ódio.
Viramos heróis justiceiros diante de nós mesmos.
A solidão indignada faz grandes discursos
interiores contra aquilo que erigimos como inimigo. Serve para dar boa
consciência. É autossatisfatória. Um prazer solitário. Exaltados, arquitetamos
vinganças e reparações. Depois, o balão murcha, sobrando apenas nossa miserável
impotência. Talvez tenha sido Stendhal o escritor que melhor caracterizou esses
estados irritados, ineficazes e inócuos.
Ao se manifestar na presença de outra pessoa, ou de
duas, ou num pequeno grupo, a indignação leva ao descontrole. Nervosos, falamos
alto e dizemos coisas que, na calma, jamais pronunciaríamos.
Quando um de seus heróis se deixa levar pelos
discursos coléricos, Homero faz alguém sempre repreender: "Que palavras
ultrapassaram a barreira de teus dentes!". Porque não somos mais nós que
falamos, mas algo que está em nós e que ocupou nosso corpo esvaziado de
qualquer poder reflexivo: a indignação. Assim também ocorre com os jorros
furibundos de palavras que inundam as redes sociais.
A multidão indignada é, por sua vez, uma
catástrofe. Tomada por um furacão de pulsões, ela atropela, esmaga, lincha.
A indignação trava as forças racionais. Alimentada
pelas paixões, usa uma aparência de razão como fole para soprar nas brasas.
Está claro, aceita só argumentos que servem a reforçar e ampliar seu domínio. É
feita de radicalismos.
Assim, anula todas as complexidades e nuanças,
bloqueia qualquer compreensão que não seja inteira e simplificada. Anula também
o outro, como ser humano, se ele não compartilhar de nossa própria indignação.
Jorge Coli
É
professor titular de história da arte na Unicamp e autor de 'O Corpo da
Liberdade' (Cosac Naify).
Fonte: Folha de S. Paulo - ilustríssima - 4/02/2018.