A
insurgência dos vaga-lumes
Em vez de optar pela
desesperança, há quem continue a apostar na rebelião do pensamento
Imagine um livro denso sobre a obra e o pensamento
de Franz Kafka que, para ser lido, exija o trabalho prévio de desatarraxar com
chave de fenda dois pequenos parafusos enferrujados trespassando todas as
páginas, desde a capa até a contracapa.
Ou um volume que, a propósito de falar de
insurreições e revoltas de rua, tenha a extremidade das folhas chamuscadas,
exemplar a exemplar, e por isso recenda levemente a papel queimado.
Ou, ainda, uma brochura sobre o inferno do sistema
prisional, com as costuras da lombada à vista, acondicionada dentro de um
marmitex de papel alumínio, simulando uma quentinha.
Tais ousadias gráficas, que dessacralizam o formato
livro e ao mesmo tempo convertem tais publicações em objetos de arte,
constituem apenas um dos muitos aspectos instigantes dos títulos lançados por
uma editora alternativa paulistana, de catálogo tão enxuto quanto insubmisso às
convenções do mercado.
Para além do artesanato e dos experimentalismos
materiais que nos atiçam os sentidos, o portfólio da n-1 edições impressiona
pelo espírito transgressivo de sua proposta editorial. Não são livros
destinados ao mero deleite, à leitura de puro entretenimento. Foram escritos,
de modo deliberado, para ferroar consciências.
"A ideia é oferecer pontos de vista que ponham
em xeque a perspectiva da razão ocidental, branca, masculina, heteronormativa,
eurocêntrica", explica o filósofo, professor e tradutor Peter Pál Pelbart,
que dirige a editora ao lado do sócio, o produtor cultural Ricardo Muniz
Fernandes. "Queremos suscitar alteridades e insurreições de pensamento,
por meio da propagação de vozes plurais que sejam minoritárias, quase
inaudíveis."
Desde o primeiro lançamento, "Máquina
Kafka", de Félix Guattari, em 2011, até os títulos mais recentes, como
"As Existências Mínimas", de David Lapoujade, a n-1 investe em uma
linha transdisciplinar que abarca da antropologia à estética, do teatro à
filosofia, da política à literatura. Mas sempre trabalhando nos interstícios do
mercado, na tentativa de promover fissuras em relação aos discursos
hegemônicos.
O filósofo camaronense Achille Mbembe, com
"Crítica da Razão Negra", e a americana Judith Butler, com
"Corpos que Contam", figuram entre os próximos lançamentos. Autores
brasileiros, como Eduardo Viveiros de Castro ("Metafísicas
Canibais"), Suely Rolnik ("A Hora da Micropolítica") e Vladimir Safatle ("Quando as Ruas
Queimam: Manifesto pela Emergência"), também estão no catálogo.
"Resolvemos publicar esse tipo de livro diante
de nossa insatisfação com a maneira rasa de pensar que tomou conta do mercado
editorial", comenta Pelbart. "Queremos ativar sensibilidades,
promover a potência do pensamento complexo, buscar afinidades com movimentos já
em curso."
Tamanho arrojo gráfico-editorial esbarra nas óbvias
limitações mercadológicas relativas a esse tipo de produção. Para tentar
prosseguir sustentável, a editora instituiu recentemente uma espécie de
financiamento coletivo.
Por meio de pequena quantia mensal, o interessado
recebe em casa publicações do catálogo, incluindo os impetuosos folhetos da
série intitulada "Pandemia", feitos para serem repassados de mão em
mão, produzindo o efeito de contágio.
Questionado sobre se, ante o recrudescimento da
onda conservadora, é possível sobreviver à custa de uma tática que ele próprio
define como "guerrilha editorial", Pelbart responde parafraseando um
trecho de "A Sobrevivência dos Vaga-lumes", do francês Georges
Didi-Huberman.
"A dança dos vaga-lumes se efetua justamente
no meio das trevas", diz, com voz tranquila e pausada. "Quanto mais
pesada é a penumbra, mais somos capazes de captar as insurgências do mínimo
clarão, perceber os lampejos fugidios e nômades no meio do escuro."
Bom saber que, em vez de optar pelo lamento quase
geral de desesperança ou pela rendição cínica ao pragmatismo, existe gente que
continua a apostar na alteridade e na rebelião do pensamento. Mesmo que, no
presente instante, a luminescência insubordinável dos vaga-lumes pareça
eclipsada pelos clarões artificiais dos refletores midiáticos e pelo
lusco-fusco entorpecente das multitelas.
"Devemos nos tornar vaga-lumes e, desse modo,
formar novamente uma comunidade do desejo, uma comunidade de lampejos emitidos,
de danças apesar de tudo, de pensamentos a transmitir", propôs
Didi-Huberman. "Dizer 'sim' na noite atravessada de lampejos e não se
contentar em descrever o 'não' da luz que nos ofusca."
Lira Neto
Jornalista, pesquisador e biógrafo, já ganhou
quatro prêmios Jabuti por sua obra.
Fonte: Folha de S. Paulo - ilustrada - 04/02/2018.
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